Cotidiano

Socióloga afirma que justiça com as próprias mãos é uma ‘doença social’

Descrentes com o poder público, populares têm partido para cima de suspeitos de roubos e furtos para linchá-los

A criminalidade tem aumentado em Boa Vista e, nas delegacias, são muitos os boletins de ocorrência que relatam assaltos a pedestres e ataques a residências. Com o avanço da insegurança, o sentimento de vingança toma conta das vítimas e muitas pessoas acabam usando de violência extrema contra os suspeitos de roubos e furtos.

Na noite da terça-feira passada, um homem apontado como autor de furtos no conjunto Manaíra, no bairro Lauro Moreira, na zona oeste, foi perseguido, agarrado e agredido a tijoladas na cabeça até a morte. Esse não foi o primeiro caso em Boa Vista. Entre os mais recentes está a morte, também por traumatismo craniano, de um rapaz que assaltou uma farmácia no bairro Liberdade, na zona oeste, no início do mês de julho. O suspeito, que havia agredido os funcionários, foi capturado por populares, que o espancaram até a morte.

Esse tipo de comportamento é interpretado pela socióloga Ana Lúcia de Sousa como uma “doença social”. Ela disse que atualmente vivemos uma espécie de “barbárie urbana” e o que motiva o cidadão a fazer justiça com as próprias mãos é a descrença na polícia e no Judiciário.

“Sabemos que a violência é grande, que estão acontecendo muitas coisas difíceis de se encarar. Isso tudo deixa a população digamos que vulnerável. Porém, em nenhuma hipótese essa situação de insegurança justifica essa vingança pessoal contra aquele que cometeu o crime”.

A socióloga afirmou que essas medidas extremas evidenciam o adoecimento social da sociedade, que passa a combater o crime com um crime maior ainda. “Existem diversos elementos que podem ser levados em consideração. O que pode-se dizer do ponto de vista social é que estamos vivendo uma espécie de barbárie e a população vulnerabilizada por essa situação acaba contribuindo mais para isso. Isso é uma coisa que precisa ser combatida com veemência”, declarou.

Segundo a profissional, o adoecimento social é tão grande que as pessoas invertem os valores, colocando os bens materiais acima da vida humana. “Uma pessoa rouba e por causa desse ato a população se acha no direito de acabar com aquela vida. Então, as coisas acabam adquirindo um valor maior do que o da vida humana. Não importa se é um criminoso ou não, é uma vida de qualquer maneira. Isso mostra com veemência o adoecimento da sociedade frente a tantos desmandos que vêm acontecendo”, frisou.

Segundo a socióloga, antes de qualquer ato violento deve ser levado em consideração o que levou aquela pessoa a cometer um crime. “A pessoa que roubou, em alguns casos, pode ter praticado o ato por necessidade extrema, não justificando o roubo, mas muitas vezes não sabemos o que aquela pessoa está passando. E esses que chegam a tirar a vida de um criminoso, que justificativa eles encontram para tal violência?”, questionou ao ressaltar que este é um ato, sob todos os pontos de vista, condenável.

“Não é papel do cidadão fazer justiça com as próprias mãos. Para evitar isso é que foi criado o Estado. A sociedade, como é hoje, foi pensada justamente para institucionalizar a justiça. Se o Estado não está cumprindo o seu papel, vamos nos mobilizar e cobrar providências, para que ele cumpra com a sua função. O Estado que é responsável por fazer a justiça, e não mais as pessoas. Se a vingança pessoal for sempre a alternativa escolhida, teremos uma guerra de todos contra todos criando uma situação insustentável”, explicou.

CORRUPÇÃO – Para Ana Lúcia, a população também deveria se mobilizar contra os crimes de corrupção. “Essa é a maior violência que a sociedade pode sofrer, pois tira a possibilidade de ter uma condição melhor de vida para o atendimento das necessidades por meio de políticas sociais. Não vemos a mesma mobilização e sede de vingança contra estes criminosos de colarinho branco”, esclareceu.