Desconstruindo o paradigma Macunaíma – Sebastião Pereira do Nascimento*“A mãe deu a luz lá no pé da serra do Mararí e o chamou de Macunaíma. Lá ele se criou. Com dez anos ele e a mãe se mudaram para pedra pintada, na beira do rio Parimé. Lá ele cresceu e fez uma casa, um malocão. Ali ele se casou e teve dois filhos: Anike e Insikiran. Durante muito tempo Macunaíma andou pelo lavrado e morou na beira de muitos rios: Cotingo, Maú, Tacutú, Uraricoera… E por onde ele passava dava o nome aos lugares: cachoeira do Tampão, da Barragem, do Jirau, do Massagal, do Caboré, do Tamanduá, etc…” (fragmentos da história de Macunaíma narrada pelo índio Macuxi Jorge Tobias). “Depois de andar com seus filhos por muitos lugares, Macunaíma foi parar no monte Roraima. Lá ele viveu e morreu. Hoje seu espírito está por todos os lugares como forma de proteger seus filhos e seus netos. Quando chegou ao monte Roraima, Macunaíma adquiriu o poder de transformar as coisas, ou melhor, de transformar miraculosamente as rochas em pássaros ou os pássaros em rochas e assim por diante…” (fragmentos retirados do imaginário dos índios Pemon, povo que vive na região do monte Roraima).
Essas narrativas representam as diversas maneiras de como os povos indígenas veem, a partir do universo quimérico, o seu mito Macunaíma. O qual se estabelece como uma entidade mítica que conserva em sua natureza o poder de programar a existência espiritual vivenciada pelos povos indígenas por todos os tempos. Sem muito embate, aqui farei alguns comentários que se opõem à personalidade de Macunaíma ressignificada por Mário de Andrade na obra “Macunaíma”. Antes de tudo ressalto que não se trata aqui de desqualificar a obra do referido autor. Uma narrativa ficcional de rica tradição literária, considerada como um realismo que absorve o mito do índio e os mitos do povo brasileiro numa abordagem irretocável digna do próprio autor.Em “Macunaíma – o herói sem nenhum caráter”, Mário de Andrade faz alusão ao imaginário do povo do norte do Brasil, baseado principalmente nos relatos do etnólogo Theodor Koch-Grünberg. Mas também faz ênfases a outros povos do Brasil, talvez numa tentativa de (re) construir a identidade do povo brasileiro a partir da desgeografização do espaço e a despreocupação temporal concedida pelo autor.Com esse intuito Mário de Andrade desconstrói a essência do mito Macunaíma, dando-lhe uma representação diferente do que os povos indígenas têm de seu mito. O qual ficou estereotipado como um anti-herói ou um “herói sem nenhum caráter”. O termo “Macunaíma” também foi estilizado, visto que os índios do norte falam Macunaíma. Utilizando um ditongo, ao invés de um hiato entre o “a” e o “i”; na grafia Macuxi se escreve Makunaimî. Alguns falam também que na primeira edição do livro o autor escreve Macunaima. A outra forma surge a partir da tradução da bíblia para o idioma caraíba que divulga Macunaíma como sinônimo de deus cristão.Embora seja reconhecido que Macunaíma é um personagem, e por si só é uma lenda dos povos indígenas da Amazônia, os índios locais têm nele uma entidade de grandeza espiritual, virilidade e fortaleza ao contrário do que a obra estetiza. Partindo disso é que anotei a partir da narrativa andradiana pelos menos três passagens que se opõem ao universo do Macunaíma indígena. Na primeira passagem quando o autor diz “No fundo do mato virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. […] a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança foi o que chamaram de Macunaíma.”Portanto, essa personagem idealizada pelo autor como uma criança de aparência feia, manifesta uma conotação difusa de que a criança é feia só porque é índia ou porque também é negra? Isso além de suscitar um simbolismo conflitante no imaginário indígena vislumbra um encobrimento da violência constitutiva daquilo que ainda hoje se entende como a realidade nacional. Na segunda passagem quando diz “No mucambo se alguma cunhatã se aproximava dele pra fazer festinha, Macunaíma punha a mão nas graças dela, cunhantã se afastava. Nos machos cuspia na cara.” Essa narrativa também contrasta com o universo indígena na medida em que insulta Macunaíma às intenções libertinas, o que leva a ideia de um sujeito devasso, desconstruindo a personalidade moral do mito, visto que para os índios Macunaíma é acercado de decência e de pureza divina. Na terceira passagem o autor diz “… o herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde […], se aborreceu de tudo, foi embora e banza solitário no campo vasto do céu.” Aqui a conotação doentia e preguiçosa instigada pelo autor também se opõe ao mito, onde no imaginário indígena, Macunaíma é um forte guerreiro com onipresença entre seus filhos e netos, sem nunca está solitário, pois, junto com todos continua atento e guardião de sua terra sagrada, a terra de Macunaíma.
* Filósofo [email protected]
A beleza no simples – Afonso Rodrigues de Oliveira*“Quando ela canta me lembra um pássaro. Não um pássaro cantando, mas um pássaro voando.” (Ferreira Goulart, referindo-se a Nara Leão)Concordo plenamente com o Ferreira Goulart. É na suavidade e doçura na voz da Nara Leão que nos encantamos com a suavidade da música penetrando os pensamentos, num alvorecer suave e encantador. A felicidade chega, sempre, em momentos simples. O importante é que estejamos sempre preparados para o encanto. Porque ele é invisível. Não o vemos, apenas o percebemos quando nos deixamos envolver. E só nos envolvemos quando somos felizes. O que nos mantém firmes na caminhada para as veredas tortuosas que nos levam ao infinito.
Não importa onde você esteja. O que importa é que você seja suficientemente sensível para perceber a beleza que pode estar, e sempre está, à sua volta. Aconteceu comigo, quinta-feira à tarde. Eu estava num supermercado, ali próximo à minha casa. De repente emocionei-me e vivi minutos de extrema felicidade, observando o comportamento de uma criança. Era uma garotinha ativa e simpática. Imaginei que ela não devia ter mais de dois aninhos de idade. Encantou-me a maneira como ela se aproximava das prateleiras e escolhia o produto que ela certamente queria. Claro que não era atendida pela mãe simpática e atenciosa, que prestava atenção à suas indicações. O que fortalecia a beleza no comportamento da garotinha.
Tentei me desviar várias vezes da garotinha para não parecer um descontrolado emotivo. Mas não dava. Sempre me encontrava com ela. Até que me aproximei da senhora, mãe da garotinha, e com coragem lhe falei do quanto estava encantado com sua filhinha. Sem querer me estender, perguntei qual a idade da garotinha. A senhora confirmou: dois aninhos. Aí me lembrei da Anaíta. Outra garotinha que aos dois anos de idade emocionou-me quando nos conhecemos. Na verdade o nome dela é Ana Rita. No dia em que nos conhecemos, perguntei seu nome e ela respondeu espontânea: Anaíta! Bem no estilo de uma garotinha de dois anos de idade.
Anaíta está, na adolescência, mas não sei com que idade e é filha da jornalista nossa colega, Cyneida Correia. Infelizmente, receei parecer inconveniente, no supermercado e não perguntei o nome da garotinha que me fez feliz com beleza e espontaneidade. Mas o que importa mesmo é que pessoas são capazes de nos fazer felizes apenas com sua presença. E as crianças têm esse poder. Observe-as sempre e procure ser suficientemente sensível para absorver a felicidade que há nos pássaros que cantam e voam em busca da felicidade. Observe sempre a florzinha silvestre no seu quintal. Pense nisso.