Pequeno questionamento sobre ‘fantasmas oficiais’ e o bem público
Jessé Souza*
Suponhamos, nobre leitor, que você fosse um escritor renomado e que seus escritos valessem um bom preço no mercado. Neste caso, aceitaria receber meio milhão de reais para escrever um texto para o governo e, por algum motivo, acharia correto contratar outra pessoa para escrever em seu lugar (um gosth writer)?
Uns iriam argumentar que, obviamente, teriam que ver o que diz o contrato, se fosse aceito ou não um texto apenas com sua assinatura, independente de quem o produziu. No geral, poderia ser legalmente aceito um gosth writer, caso o contrato assim descrevesse ou fosse omisso.
No entanto, moralmente nem todos ficariam confortável em ganhar um grana dos cofres públicos na malandragem ou se valendo de uma brecha jurídica. Legalmente, caso houvesse uma burla ao contrato, seria um ato de improbidade administrativa.
Na vida real, um fato muito semelhante ocorreu no ano passado na Prefeitura de Boa Vista, que abriu edital público para contratar artistas locais para pintar obras em um muro, no Parque Rio Branco, mas dispensou licitação na contratação de um artista de fora, renomado, para pintar outro mural.
Foram 25 artistas locais selecionados para pintar 34 murais, os quais valeram R$150 mil, valor este dividido por cada obra e que sequer chegou à metade do que o artista de fora foi contratado, o grafiteiro Carlos Eduardo Fernandes Leo, conhecido como o Kobra. O contratoo dele para pintar o mural principal custou R$400 mil.
No entanto, este Kobra sequer colocou os pés em Boa Vista. O mural, pintado em outro muro bem menor do que o reservado aos 25 artistas locais, foi executado por artistas terceirizados por Kobra. Ele apenas assinou a obra executada por seus funcionários, numa espécie de gosth painter (se é que existe esse termo).
Se moralmente muitos podem aceitar isso, caso o contrato fosse omisso, legalmente isso precisa ser averiguado, pois não é crível que a justificativa para o valor e a dispensa de licitação foi o fato de ser um artista renomado e que, portanto, só ele poderia realizar tal obra, porém outras pessoas executaram o serviço.
Na verdade, muitos chegaram a pensar que este artista iria fazer um imenso mural vertical no mirante que foi erguido no Parque Rio Branco, e não em muro sem destaque, numa área onde circula o menor número de pessoas. E que sua presença ainda pudesse contribuir de alguma forma, como um intercâmbio, por exemplo. Mas tudo isso foi frustrado, pelo menos até aqui.
Se o contrato foi apenas por aquele muro pintado por terceiros, então é hora de os vereadores investigarem esse contrato. Se ainda falta executar parte do contrato, então que cobrem o motivo desta demora, uma vez que o mirante está lá, com todo mundo batendo foto para suas redes sociais, e o serviço já foi pago.
É necessário apurar isso direitinho, pois esses contratos são publicados no Diário Oficial sem detalhes justamente para que o cidadão comum não possa exercer o seu papel de também acompanhar e fiscalizar o que o poder público está executando com os recursos públicos.
Fica a dica aos vereadores. Ao trabalho.
*Colunista