Brasil com K ou do kákákáká: aprendemos a ser plateia, e não um povo
Jessé Souza*
Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, o Rei do Futebol, pagou muito caro por dizer, ainda na década de 1970, que o brasileiro não sabia votar. Anos se passaram e o resultado das urnas, a cada dois anos, confirma que realmente o povo brasileiro não aprendeu a votar.
Mas cabe um parêntese. Não sabe votar quando é para decidir por sua própria vida e pela vida em sociedade. Quando se trata da vida alheia, aí o brasileiro entende muito bem dessa arte. Prova disso foi a histórica votação para eliminar uma participante do programa Big Brother Brasil (BBB), da TV Globo, na noite de terça-feira.
O paredão que mobilizou o país, da direita para esquerda (e vice-versa), foi por causa da nova vilã eleita pelo povo que curte espiar a vida dos outros, a Karol Comká. A intensidade do ódio do público pôde ser medida pelo recorde de votos pela eliminação: 99,17%.
Não foram apenas artistas que se mobilizaram para torcer contra Comká, como também para pedir ao público a cabeça dela. Até o jogador Neymar estava nessa, saindo-se muito melhor como comentarista do BBB do que como atleta com a bola no pé. É a transição da Era Pelé para a Era Neymar.
O fenômeno desse paredão foi tão surpreendente que lojas fizeram um “bolão” nas redes sociais oferecendo prêmio para quem acertasse a porcentagem de votos pela eliminação. Houve até quem oferecesse valores em dinheiro, via Pix, para quem acertasse a porcentagem.
O Brasil parou no dia da votação. Até bolsonaristas esqueceram o protesto de não mais assistir à Globo. Políticos chegaram a lembrar que, na porcentagem de votos, a nova vilã aparecia com 17. Esquerda e direita se uniram contra a pessoa mais odiada do Brasil, em uma trégua jamais vista e numa guerra contra uma só pessoa.
Momentaneamente, enquanto se discutia a vida de uma única pessoa, todos esqueceram as mortes por Covid-19, o aumento do preço da gasolina, o deputado preso por seu vídeo-ameaça, a corrupção com dinheiro para combater a pandemia, a criminalidade crescente, o senador da cueca… enfim, toda a desgraça vivida pelo brasileiro.
É o brasileiro sendo brasileiro. O povo deveria pedir desculpa a Pelé por tê-lo escrachado anos após anos apenas por ele ter dito o que continua sendo uma verdade.
Comprovadamente, somos o país do BBB, em que o brasileiro se une em torno de uma grande encenação planejada dentro de um confinamento, ao mesmo tempo em que é vítima de um confinamento compulsório enquanto os políticos metem a mão na nação.
E ainda tem outro forte ingrediente: a hipocrisia. Há muitos Comká por aí, tramando, discriminando, assediando, aterrorizando, massacrando, fomentando o ódio e a violência gratuita; gente gravando vídeo ameaçando matar e pedindo a volta da tortura; gente enaltecendo torturadores, gente cristã defendendo armas…
O que explica tudo isso é que o brasileiro não aprendeu a votar porque nunca conseguiu ser povo de verdade, sempre dividido historicamente, entre casa grande e senzala, entre peão e patrão, entre ricos e pobres, entre preto e branco, entre esquerda e direito (pior: entre extrema direita e extrema esquerda).
O brasileiro foi amestrado e aprendeu a ser telespectador, a ser público online, a ser plateia de auditório que senta, levanta e aplaude, que sabe se unir apenas na frente da TV para votar sobre a vida dos outros.
Aprendemos a ser torcedores, nunca atores. Que venha logo a Copa do Mundo para ver o brasileiro outra vez unido, como ocorreu no paredão do BBB de terça-feira.
Com K ou sem K, somos um povo pusilânime. Ou um povo de memes e do kákákákáká…
*Colunista