Da fila do assistencialismo à questão energética, um passeio por nossas vergonhas
Jessé Souza*
A questão energética no Estado de Roraima vai muito além do que se convencionou a ser divulgado para a opinião pública, geralmente colocando a culpa exclusiva nas populações indígenas e nos interesses ambientais, o que mais se aproxima de uma teoria da conspiração do que realmente de fatos.
Sempre foi interesse de boa parte dos políticos manter a população do Estado dependente do assistencialismo, implantado com toda força partir da chegada do hoje falecido Ottomar Pinto, brigadeiro da Aeronáutica nomeado governador dentro da cota das Forças Armadas, no início da década de 1980, pelo regime militar. Com sua popularidade, se tornou um político amado pelo povo, a ponto de ter sido o primeiro governador eleito pelo voto direito após a abertura democrática.
De lá para os dias atuais, os políticos que foram chegando e se apropriando de pontos chaves não só da política partidária, mas também da condução social e econômica do povo roraimense, encontraram uma sociedade habituada a ir para a fila da distribuição de peixe, buchada, frango, rede, presentes de Natal e em datas comemorativas chaves, como Dia das Mães e Dia dos Pais.
Na mais moderna forma de cooptação, surgiu a “gafanhotagem”, que nada mais era do que receber do governo sem trabalhar. Desta vez não eram apenas os pobres na fila da buchada (como se dizia na época), mas da classe média também com seus filhos (e agregados) como “gafonhotos” na fila do pagamento do funcionalismo.
Mas não só a classe média. Até empresários tinham sua cota assistencialista, a ponto de seus filhos irem crescendo já com uma fatura debaixo do braço indo para a fila da Secretaria da Fazenda receber do governo sem entregar obras ou realizar os serviços contratados. O escândalo do “caso DER” foi apenas o mais emblemático deles.
Obviamente que há mais ingredientes nesse grande bolo, mas aí teria que ter um ano de coluna para detalhar todos. Mas fiquemos com esse fato principal, de os políticos terem o domínio completo do povo por meio do assistencialismo, que logo transformou a compra de votos em feira-livre, quando famílias inteiras iam (ou ainda vão) montar vigília em frente de suas casas ou na esquina, durante a noite e madrugada antes do dia da votação, para esperar a compra de votos. E também de terem o domínio da elite local.
Esses fatos servem para demonstrar a maneira como os políticos transformaram o povo roraimense em pedintes de gabinete ou dependentes de políticas assistencialistas, como se fôssemos um arremedo de cidadãos, os quais estão sempre prontos para serem comprados ou alugados.
Mas onde entra a questão energética nisso tudo, que é o tema central deste artigo?! A questão energética foi apenas mais um dos meios utilizados para deixar tudo como está, com o povo dependente desta vez não só do assistencialismo, aos moldes do que era naquela época, com as pais e mães com seus filhos em filas quilométricas para receber brinquedos de Natal. Mas principalmente com todos dependentes dessa forma de se fazer política.
Os políticos passaram a criar e alimentar os grandes problemas, travando de alguma forma a questão energética e a regularização fundiária, por exemplo, para logo depois se apresentarem como se eles fossem a única solução para os graves problemas que afetam diretamente o desenvolvimento do Estado. O asfaltamento da BR-174 foi cantado e decantado como o principal fato de desenvolvimento de Roraima, dentro desse grande teatro.
Por longos anos, Roraima teve em sua bancada federal, em Brasília, um poderoso e influente senador que se tornou líder de todos os governos, tanto de direita quanto de esquerda, de FHC a Lula, de Dilma a Temer. Ele mesmo, Romero Jucá (MDB), que só não seguiu com sua forte influência no Planalto Central porque não se reelegeu.
Porém, todo esse poder não se transformou em solução para os principais problemas que travam o desenvolvimento do Estado. Inclusive, em mais recente investida, a promessa de enquadrar ex-servidores na União foi outra bandeira encampada aos moldes de tantas outras ao longo de repetidas eleições.
Porém, a questão energética vai muito além dessas facetas. Há outros fatores envolvidos, como o fato de ter gente ganhando muita grana com a geração e fornecimento de energia elétrica produzida por geradores, os quais são altamente poluidores. Antes de a Venezuela colapsar e cortar o fornecimento da energia de Guri, já existia gente ficando rica só alugando geradores termelétricos instalados nos municípios.
Com o fim definitivo da energia de Guri, gerar e fornecer energia termelétrica para Roraima tornou-se uma imensa “galinha de ovos de ouro”, com forças nem tão ocultas fazendo de tudo para não matá-la, ou seja, para que a construção do Linhão de Tucuruí não avance.
A conta para que este linhão não saia, o que significaria uma energia confiável e de qualidade para Roraima, sempre está sendo jogada para os indígenas. Mas os políticos e seus aliados fazem de tudo para esconder a realidade.
A construção do Linhão de Tucuruí, por atravessar a Terra Indígena Waimiri Atroari, entre Roraima e Amazonas, tem passos obrigatórios a serem obedecidos à luz das legislações brasileira e internacional.
Portanto, é necessário realizar consulta livre, prévia e informada, conforme determina a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. E isso independe da vontade exclusiva dos índios. É necessário também realizar um licenciamento ambiental dentro das normas exigidas pela legislação brasileira. O que também não depende dos índios.
Como esses estudos e licenças não são realizados como mandam as normas legais, é óbvio que qualquer empreendimento será barrado. E por que isso não avança, já que tudo depende somente do que determina a legislação, e os índios já disseram reiteradas vezes que não são contra? Obviamente porque há muito interesse envolvido, como a montanha de dinheiro que a geração de energia termelétrica proporciona para alguns poucos.
Não precisa fazer muitas contas. As termelétricas têm consumo diário de aproximadamente um milhão de litros de óleo diesel, o que apresenta um custo de R$ 3,5 milhões por dia! Não podemos esquecer que a venda da estatal que gerava e fornecia energia para Roraima custou o preço de banana em final de feira durante um leilão.
E mais: até uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi criada, na Assembleia Legislativa, a fim de apurar o que está ocorre
ndo no sistema energético roraimense, mas ninguém ouve mais falar em nada sobre o assunto. Silêncio total!
Apesar de todas essas evidências que estão aí, para quem quiser entender, a culpa por não ter saído o Linhão de Guri continua sendo atribuído exaustivamente aos indígenas. Mas, para quem quer ser um bom entendedor, estão óbvios os reais motivos para deixar tudo como está em Roraima.
O povo sofre severos transtornos com as constantes falta de energia, com mais frequência no interior, mas logo é levado a crer que a solução está naqueles mesmos políticos que são responsáveis por travar o desenvolvimento do Estado, na base da política do “quanto pior, melhor”.
*Colunista