O momento de reconhecer e elogiar é agora, em vida, e não após a morte
Jessé Souza*
As redes sociais acabaram se tornando um grande obituário das vítimas de coronavírus, quando as pessoas parecem disputar a primazia na divulgação de mortes pelo coronavírus. Até a foto do perfil substituída pela imagem de “Luto” passa a impressão não mais daquela de dor por uma perda, mas de uma necessidade de chamar a atenção de seguidores ou conquistar mais “likes”.
Mas a dor sempre estará lá, seja por parte da família, de amigos, colegas de trabalho ou por conhecidos. Porque a perda de uma vida é muito dolorosa. Embora a religião tente nos confortar, a aceitação é muito difícil. Só quem passa por essa dor sabe de todas as suas extensões. Às vezes, fica uma marca para o resto da vida.
O momento de pandemia fez a morte mais presente em nosso círculo social, senão em nossa própria família. E as redes sociais passaram a ser o local onde as notícias de mortes desfilam. É lá onde somos pegos de surpresa pela partida de um amigo ou de um conhecido de nosso círculo de amizade. Ou mesmo de algum famoso.
Até quem antes acusava a imprensa de ser “urubu de porta de hospital ou de cadeia” hoje sente uma necessidade de ser o primeiro divulgador das mortes. Outros internautas já haviam se tornado “porta-vozes da desgraça”, muito antes da pandemia, em busca dos minutos de audiência e de “likes”.
Na sequência dessa disputa mórbida pela primazia, fica outra parcela, inclusive da mídia tradicional, correndo atrás dos mortos, para contar histórias ou elogiar quem em vida foi exemplo de boa pessoa. E por que essas pessoas não são lembradas em vida, reconhecidas pelo seu trabalho, por sua luta, pelo seu caráter e pelos seus atributos em favor do próximo?
Por que o bom empresário não é reconhecido por suas ações em vida, em vez de ser enaltecido somente na morte? Por que não o reconhecimento no momento da batalha, como exemplo a ser seguido e reconhecido pela sociedade por seus méritos? Por que não elogiá-lo agora, enquanto está na batalha em vida, em vez de esperar a morte ou um sinistro?
Esse momento crítico de pandemia deveria levar os donos de páginas e de mídia a repensar seus atos de só reconhecer o pós-morte, ignorando os bons em vida, no momento em que essas pessoas precisam de reconhecimento até mesmo como forma de incentivo.
Essas histórias deveriam ser contadas diariamente, e não para um museu que mais serve para quem divulga, em busca de audiência ou de “likes”, do que para quem batalhou por toda vida e que não faz mais parte dessa sociedade ingrata, que costuma reconhecer somente após a morte. Até bandido vira herói dentro desse comportamento anômalo.
No meio desse turbulento momento, um fato extraordinário ocorreu mais precisamente no Hospital Geral de Roraima (HGR). O Dr. Mauso Asato, um especialista que dedica sua vida a salvar vidas, superou a Covid-19 após passar por um momento crítico. Embora conhecido por sua competência e dedicação, nunca se viu a ele uma homenagem a altura de sua importância dentro de nossa sociedade.
Os disputadores de audiência e de “likes” nas redes sociais agiram vorazmente, inclusive publicando fotos de seu sofrimento em batalha pela vida. Os mesmos que nunca foram para seus perfis o elogiarem por sua competência, altruísmo e dedicação profissional. Estavam esperando o pior para começar a contar a história e enchê-lo de elogios públicos?
Este profissional foi até às últimas consequências, quando decidiu que não queria ser enviado para outros centros médicos fora do Estado, para onde políticos e outras autoridades costumam ir ou serem levadas pela família na hora da gravidade.
Essa decisão não foi apenas porque ele sabia que, fora de Roraima, seria “apenas mais um em luta pela vida”. Mas porque, acima de um profissional competente na mesma área em que agora passava a ser um paciente, é um grande líder. Sendo líder conhecedor da realidade e competente no que faz, acreditou deixar sua vida nas mãos da sua equipe.
Dentro de várias histórias bonitas contadas pós-morte neste momento de pandemia, temos um grande exemplo em vida, que precisa ser lembrado e contado a toda hora, especialmente nesse país em que as pessoas só costumam reconhecer na hora da morte.
É disso que estou falando. De a sociedade parar de cultuar falsos ídolos construídos pela mídia e de eleger heróis somente depois da morte. Precisamos valorizar as pessoas em vida, já, agora. E não se trata de reconhecer apenas um bom profissional, mas também um pai, uma mãe, um amigo ou conhecido que são exemplos que precisam ser reconhecidos e valorizados.
Chega da cultura de morte. Temos que adotar a cultura da vida. Esse deve ser o nosso “novo normal”.
*Colunista