O mito demoníaco e o Brasil de Lázaro das milícias rurais, urbanas e garimpeiras
Jessé Souza*
Para um país que elegeu um presidente como um falso mito, o qual está mais para um meme bem próximo do personagem folclórico Seu Nunga, é perfeitamente explicável o que se criou em torno da imagem do bandido Lázaro Bárbosa, o covarde serial killer de Goiás que só mata pessoas indefesas. Insentivadas a abominarem a imprensa e a se informarem por meio de correntes de WhatsApp e compartilhamentos de redes sociais, as pessoas logo criaram um mito demoníaco em torno do bandido mais famoso do país, associando sua fuga até então espetacular a um pacto demoníaco e até mesmo poderes sobrenaturais.
Quase quinze dias depois, quando o criminoso conseguia escapar a um rigoroso e midiático cerco, executado por policiais treinados e equipamentos de última geração, a verdade começou a surgir: não havia nada de excepcional ou demoníaco, e sim a ajuda de pessoas que não queriam apenas proteger o bandido, como também que ele continuasse agindo no crime.
A verdade dos fatos é que a única possessão demoníaca neste caso é aquela que o Brasil rural já sabe há tempos, mas que muitos não têm coragem de expor: a existência de milícias que impõem o terror e suas próprias leis em áreas rurais onde as autoridades não chegam nem as polícias têm preparo para agir.
Investigações apontam que Lázaro poderia estar agindo a serviço de um grupo de proprietários rurais que agem como em qualquer parte do Brasil agrário onde impera a ausência de leis, aterrorizando as pessoas para que abandonem suas propriedades ou as vendas a preços irrisório. Pior: em muitos casos as pessoas são expulsas a balas ou eliminadas em conflitos agrários disfarçados de uma tragédia qualquer, a exemplo do que Lázaro provalvemente estava a serviço, metendo medo e eliminando que não se intimidava ou impunha dificuldades nos planos diabólicos de se apossar de mais terras a preços irrisórios ou mesmo grilando.
Que o Brasil não se engane. Esse é a forma de agir das milícias agrárias, as quais têm a proteção dos coroneis regionais da zona rural e da política regional, os quais encontram abrigo e proteção em bancadas ruralistas no Congresso, as quais estão organizadas agindo contra o meio ambiente, povos indígenas, quilombadas, pequenas famílias produtoras ou pessoas que resistem às investidas para que deixem suas terras para que o agronegócio se aproprie.
Neste momento, enquanto Lázaro é cultuado na mídia e se tornando um mito por meio de correntes de WhatsApp e memes espalhados nas redes sociais, a bancada ruralista no Congresso, com apoio da base governista, estão empenhados em aprovar projetos antiambientais, anti-indígenas e que retirarm direitos dos servidores públicos.
O caso de maior repercussão é do Projeto de Lei 490, em tramitação na Câmara Federal desse 2017, que fere de morte as demarcações de terras indígenas, tudo o que os ruralistas querem neste país para fazer com os índios o que o bandido Lázaro estava fazendo em uma pacata área rural de Goiás, apoiado por grandes proprietários que querem se apropriar ainda mais para especular, para se apropriar das riquezas e acumular poder.
O plano de expulsar os indígenas de suas terras está em execução na Terra Indígena Yanomami, onde grupos de “lázaros”, garimpeiros fortemente armados, inclusive com bombas de gás lacrimogênio, estão há quase um mês em seguidas incursões pelo Rio Uraricoera atacando comunidades indígenas a tiros.
Desafiaram até a Polícia Federal, que recuou e não voltou mais lá, como se esta milícia garimpeira também tivesse algum pacto demoníaco. Este caso sequer ganhou ampla repercussão nacional, apesar da gravidade, que é o surgimento de milícias garimpeiros que desafiam o poder central.
Da mesma forma como existem milícias nas favelas do Rio Janeiro que desafiam os poderes constituídos, inclusive mostraram ter apoio de autoridades policiais e de políticos, entre elas gente ligada ao atual governo. É por isso que há uma corrente que defende a liberação de armas, pois quem irá se beneficiar são milicianos e outros bandidos, já que o cidadão mal consegue dinheiro para comprar gás de cozinha e colocar gasolina em seu veículo.
Essa é a realidade do país de milicianos, em que o povo é chamado a construir falsos mitos, como foi o caso do bandido Lázaro, enquanto está em curso um grande movimento, alimentado por fake news, que promove um ataque sistemático a direitos conquistados pelo povo sob muita luta. É preciso discernimento para que o cidadão não caia nessa histeria coletiva.
*Colunista