Feridas abertas e a necessidade de enxergar como nossa desgraça está a caminho
Jessé Souza*
Quase duas décadas depois, os reflexos dos conflitos fomentados na disputa pela Terra Indígena Raposa Serra do Sol ainda ecoam. Um recente fato mexeu nas feridas que ficaram abertas: o ex-vice-governador de Roraima, Paulo César Quartiero, e três associações indígenas, que sempre foram ligadas a políticos e ao governo, foram condenados pela Justiça Federal por ataques feitos contra indígenas, em 2003.
Conforme a decisão, o então maior produtor de arroz do Estado, Quartiero, foi o líder do grupo que destruiu 34 casas das comunidades indígenas Jauari, Homologação, Brilho do Sol e os Retiros Insikiran e Tal-Tal, além de ter deixado uma pessoa ferida a bala, naquele ano. A denúncia foi feita pelo Ministério Público Federal (MPF).
A decisão judicial afirma que Quartiero liderava um grupo de rizicultores e indígenas, os quais se uniram para realizar o ataque durante a visita do então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos a Boa Vista, em meio ao processo de homologação daquela terra indígena. Foram usados motosserras, veículos e armas, o que mostra ter sido uma ação orquestrada e patrocinada financeiramente.
Foram condenadas as associações Aliança para o Desenvolvimento das Comunidades Indígenas (Alidicir), Regional Indígena Dos Rios Kino, Contingo e Monte Roraima (Arikon) e Sociedade de Defesa dos Índios Unidos do Norte (Sodiurr). Junto com Quartiero e lideranças indígenas, essas entidades terão que pagar R$200 mil de indenização aos povos indígenas vítimas do ataque.
Uma decisão histórica do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2009, confirmando a homologação da Raposa Serra do Sol, pôs fim à disputa por aquelas terras, definindo novos rumos para o Estado de Roraima. Mas as feridas ficaram, e esta recente decisão, da qual ainda cabe recurso, acabam por lembrar que, no passado recente, os grupos políticos e econômicos estiveram juntos para defender os seus interesses.
O mesmo está ocorrendo agora, com relação ao garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami, onde visivelmente há um movimento oculto que apoia as ações ilegais e criminosas do garimpo, que ameaça não apenas a vida dos indígenas, mas o futuro do Estado, especialmente pela flagrante agressão aos principais mananciais de água potável, fato este abafado pelos interesses nem tão obscuros assim.
Enquanto isso, apenas um pequeno grupo de pessoas fatura milhões sob a ameaça à vida dos indígenas, a exploração da mão de obra de garimpeiros, a evasão de divisas, exploração de crimes no meio da floresta e as severas agressões ao ecossistema, cujos reflexos vão cobrar um preço caro para a sociedade em futuro não distante, caso tudo isso não seja freado a tempo.
É preciso entender que os grupos que estão no poder não medem esforços nem consequências para manter os seus interesses econômicos e partidários. É por isso que o garimpo ilegal continua forte, a ponto de mobilizar gente para defender abertamente, em praça pública, uma atividade flagrantemente ilegal, desafiando os poderes constituídos.
O passado de Roraima nos faz lembrar que o poderio dessa gente que só enxerga cifras e números, muitas vezes disfarçados de “defesa do desenvolvimento do Estado”, não tem limites. Eles passam por cima de tudo, não só dos indígenas, mas também da garantia do bem-estar coletivo de toda a população, como o que está ocorrendo com a destruição de nossos mananciais de água potável.
E as pessoas são levadas a não enxergar que o garimpo ilegal, da forma que está sendo fomentada, é a construção acelerada da desgraça de toda uma sociedade. Significa que todos, sem exceção, estamos sob sérios riscos.
*Colunista