Talvez não haja mais tempo para rever conceitos quando se chega a uma UTI
Jessé Souza*
De origem indígena, com 58 anos de idade, há quatro anos ela conseguiu vencer uma dura batalha contra o câncer. Mas a chegada da pandemia de coronavírus impôs uma nova etapa na vida, em que lutar para continuar vivendo passou a ser um desafio para todos diante de uma doença desconhecida. O atraso na chegada da vacina, no Brasil, permitiu que muitos sucumbissem antes de se imunizarem. Referendada pelos cientistas e chancelada pelas autoridades sanitárias dos países, a vacina é a única saída para frear o vírus e devolver a normalidade para a vida das pessoas, ainda que seja a partir de um “novo normal”.
Mas surgiu um “porém”. Diante de um movimento negacionista que se implantou no Brasil, as fake news sobre a vacina, disseminadas pelo próprio presidente e alimentadas pelas igrejas evangélicas, se tornaram um novo desafio para a saúde coletiva. Muitos se negam a se vacinar porque acreditam nessas mentiras incisivas.
Entre as populações indígenas, há quem acredite que a vacina pode transformar as pessoas em animais; não só em jacaré, como apregoou o presidente no início da pandemia, mas em onça, porco do mato, capivara… uma vez que essas mentiras acabam mexendo na cosmogonia herdade dos ancentrais desses povos tradicionais.
Entre os não indígenas, com a lavagem cerebral política anticiência e a pregação dos púlpitos de pastores adeptos da política negacionista, que passaram de caça-níqueis a caça-votos, as pessoas passaram a crer que a vacina é uma trama maligna, seja para instalar na veia um chip do capeta ou parte de um plano mundial para eliminar as pessoas que irão morrer em um ano e meio depois de vacinadas.
Foi assim que começou o novo drama na vida dessa senhora de 58 anos, do início deste artigo, a qual era ativa na troca de mensagens de WhatsApp, disseminadas diariamente por igrejeiros e negacionistas, pregando a paranoia da antivacina. Por isso, tal prática contumaz trata-se de um esquema tão criminoso quanto negar a imunização em massa.
Ao se negar a se vacinar, ela pegou a Covid-19 e foi parar na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do Hospital Geral de Roraima (HGR) com 75% do seu pulmão comprometido. Está lutando contra a vida ao lado de outras pessoas em situação semelhante. Assim que chegou ao hospital, na quarta-feira passada, ainda consciente, pediu para se vacinar, mas já era tarde.
Como estamos em uma realidade em que as pessoas estão suscetíveis a mentiras e teorias da conspiração, com muitos sequelados espiritualmente devido a aproveitadores religiosos, além de outros sujeitos a qualquer paranoia, muitos estão deixando de se vacinar. E outra grande parcela passou a crer que não precisa mais tomar a segunda dose, porque também foram fisgadas por essas paranoias disseminadas pela internet.
E assim está sendo construída uma terceira onda do coronavírus. No HGR, as UTIs continuam lotadas com pacientes de coronavírus enquanto a imprensa nacional noticia que Roraima é o Estado que menos vacinou sua população, com apenas 29% da população totalmente imunizada com a 1ª e 2ª doses da vacina. Na UTI onde a nossa personagem está, ninguém tomou a vacina.
Outro fato que preocupa é que um boletim divulgado na sexta-feira passada, 12, pela Fiocruz, diz que a nova onda de Covid na Europa e na Ásia precisa servir de alerta para o Brasil. A proximidade das festas de fim de ano e, logo em seguida, a chegada do Carnaval, desenha um quadro favorável para esta nova onda que já chegou em outros países.
O número de não vacinados em Roraima é muito grande, apesar de as doses da vacina estarem disponíveis em vários postos da Capital e do interior. O negacionismo alimentado pelo bolsonarismo e a teoria diabólica disseminada por evangélicos irresponsáveis são o estopim para uma nova tragédia que estar por vir.
Como os políticos foram responsáveis por fazer as pessoas perderem o medo do vírus, ainda na campanha eleitoral passada, a maioria já não segue mais os protocolos sanitários, como o uso de máscara e a higinenização das mãos. E, ao se negarem a se imunizar, está pavimentado o caminho para a nova onda de coronavírus.
É preciso levar em conta que nem todos reagem da mesma forma ao pegarem o vírus. E muitos já relaxaram completamente sobre as normas sanitárias. Por isso a vacina é a única forma de se evitar o estágio grave da doença, que pode levar a morte em pouco tempo. Só quem tem um conhecido ou familiar entubado na UTI tem a dimensão exata do que está ocorrendo neste momento.
Muitos que estão lutando pela vida, na UTI, talvez não tenham uma nova oportunidade para rever suas condutas por terem deixado se levar pelo negacionismo e pelo terrorismo religioso. São vítimas de um movimento que precisa ser combatido a qualquer custo, pois estão contribuindo para deixar inúmeras famílias órfãs de entes queridos.
O Brasil precisa de pressa para se livrar desse negacionismo que está destruindo as pessoas. Ainda há tempo para acordar. Desde criança fomos imunizados quando a ciência ainda nem tinha os instrumentos de hoje. Vacinar-se já é um bom começo para começar a mudar essa mentalidade retrógada que estão instalando no país.
*Colunista