Edital de concurso despreza todos os avanços na educação indígena
Jessé Souza*
Quando se trata de educação indígena, as autoridades de uma forma geral ainda não conseguem oferecer o tratamento adequado às questões administrativas e pedagógicas inerentes a esta educação diferenciada. A estrutura física das escolas localizadas nas comunidades indígenas, por exemplo, está ignorada há mais 30 anos, sem qualquer tipo de atenção.
Para se ter uma ideia, todas as escolas construídas nas comunidades ainda no primeiro governo do falecido Ottomar Pinto, na década de 1990, nunca passaram por qualquer tipo de obra de reforma ou ampliação. Muitas escolas foram construídas pelas próprias comunidades, cujas estruturas não oferecem o mínimo de conforto, conforme já foi comentado em antigos anteriores.
O desprezo, a desatenção e o despreparo para lidar com a situação é um desafio constante, apesar do grande avanço que a educação indígena registrou nos últimos anos, a ponto de hoje ser exemplo para secretarias de Educação de outros estados. Mas os grandes desafios seguem, a exemplo do que está ocorrendo com o concurso público para professores indígenas lançado pelo Governo de Roraima.
Os professores e gestores que lidam com a educação superior indígena estão protestando contra os critérios adotados no concurso destinado a contratar novos professores para as escolas indígenas estaduais, uma vez que a comissão simplesmente ignorou a realidade do curso de Licenciatura Intercultural da Universidade Federal de Roraima (UFRR).
A situação vem sendo tratada com uma forte indignação, pois todo o histórico de desafios e lutas no curso de Licenciatura Intercultural foi desconsiderado. Em sua rede social, a professora Mariana Cunha comparou a situação como um golpe profundo a “um dos cursos de formação superior indígena que mais forma aluno na perspectiva Intercultural, diferenciada, valorizando os conhecimentos tradicionais, assim como os conhecimentos científicos e do nada o edital não contempla essa formação”.
“Quantos alunos ajudamos na formação para que hoje graduados pudessem ter a oportunidade de concorrer a uma vaga e do nada essa formação não aparece e os indígenas que fizeram parte da comissão não defenderam? Temos vários alunos cursando mestrado, outros doutorado e, mesmo assim, tudo isso não servirá de nada? Mas vamos derrubar esse edital, não podemos aceitar essa manobra que estão fazendo”, escreveu a professora Mariana em sua rede social em explícito tom de indignação.
As autoridades, em todos os níveis de governo, precisam parar de ignorar a educação indígena em Roraima, como se ela não existisse, pois a política indígena de educação vem sendo construída em vários frentes há décadas, por meio de reuniões comunitárias e assembleias da Organização dos Professores Indígenas de Roraima (Opirr).
Embora isso não costume ser divulgado na imprensa tradicional e ignorado pelos governos a cada administração, a educação indígena tem construído sua história, a ponto de ter avançado com a implantação do Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena da UFRR, que proporcionou um salto importante na educação indígena em Roraima.
Não considerar a formação superior indígena é um grave erro no processo de construção do concurso público para contratar professores estaduais indígenas. Então, é mais que justa essa indignação de quem tem lutado por uma educação diferenciada que vem sendo construída a custa de muito sacrifício de lideranças, gestores e educadores indígenas.
Realizar um concurso público não pode ser tratado apenas de forma eleitoral, visando mostrar que determinado governante está garantido mais emprego e mais professores para as escolas. É preciso considerar toda realidade envolvida, pois a experiência de décadas de luta comprova que somente o professor indígena é capaz de compreender e se adaptar a realidade de uma comunidade.
Professores não índios que desconhecem essa realidade e todas as aspirações envolvidas no contexto jamais irão se adaptar, se tornando um intruso nas comunidades, os quais fatalmente irão abandonar a escola porque sua realidade, sua visão de mundo e suas aspirações são outras. E o que era para ser uma solução acaba se tornando um problema a mais para a educação indígena.
Então, o mínimo que se pode fazer é considerar o grave erro nesse edital, pois, da forma que ele foi elaborado, o edital do concurso exclui exatamente aqueles que investiram toda a sua vida numa formação diferenciada que respeita a realidade dos povos tradicionais, os quais têm na educação um futuro melhor não só para suas comunidades e o futuro de todas as gerações, mas também para uma sociedade envolvente menos injusta e excludente.
*Colunista