Opinião

E so uma sacudidela 13244

É só uma sacudidela

Afonso Rodrigues de Oliveira

“Bendita crise que sacudiu o mundo e a minha vida” (Mirna Grzich)

Quem já teve contato com o livro “Universo em Desencanto” sabe do que sempre falo. E quem ainda não conhece o assunto, fica pensando que se trata de religião. Nada disso. Não sei se você vai ficar chocado comigo, mas é pura verdade. Desde minha infância, tenho dificuldade em me entrosar com as religiões. Mas aprendi muito cedo a respeitar todas as religiões. Elas fazem parte da caminhada para o progresso a regresso. E o mais interessante é que só muito tempo depois de adulto foi que entendi meu comportamento. Eu não me sentia mal comigo, mas minha queridíssima mãe dizia para meu pai, que eu era comunista.

Meu pai sempre balançava a cabeça, quando ela falava essa ninharia. Ele era muito amigo do Bispo e sempre íamos à sua casa. E eu detestava aquela visita. É que o Bispo falava pro meu pai, que ele deveria me orientar para ser padre, porque eu tinha tudo para isso. E meu maior medo era que meu pai fosse na do Bispo. Mas ele era muito vivo e não acreditava no Bispo. Mesmo porque meu pai, mesmo amigo do Bispo, não era muito chegado à igreja. Minha mãe é que nunca faltava a uma missa.

Acho que já falei pra você, daquela missa em que minha mãe me deu um cocorote na cabeça, porque ri da fala do padre. Eu ainda era bem criança, mas como ela achava que eu era comunista, me levava sempre à missa. Aquela missa era numa quarta-feira-de-cinzas. Durante o carnaval, antes da missa, cantaram uma música assim: “…com pandeiro ou sem pandeiro, meu amor, eu brinco”. O padre Suassuna era conhecido, por beber todo o vinho da igreja. Naquela manhã a igreja estava lotada para receberem a cinza. Que era uma cruz que faziam na testa das pessoas, com o dedo cheio de cinza.

O padre chegou ao altar com cara de mal-humorado. E já chegou atrasado. Arrumou as coisas, virou-se para o pessoal e falou bem alto:

– Com pandeiro ou sem pandeiro, hoje eu não dou cinza! Todo mundo pra casa.

Você não imagina a risada que eu dei. Mas, maior do que a risada, foi o cocorote que minha mãe deu na minha cabeça, com o dedo maior. A pancada foi tão grande que sempre que me lembro disso sinto uma dorzinha no meio da cabeça.

Mas não me tenham como um ateu de cabeça oca. Minha admiração e respeito pela Cultura Racional está na racionalidade. Prefiro acreditar que cheguei aqui, na Terra, há vinte e uma eternidades, a acreditar que sou descendente de um homem feito de barro. Mas a Cultura Racional é racional. E na racionalidade você tem que ser racional. E nunca iremos ser racionais se não respeitarmos a caminhada de cada um. Pense nisso.

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A confusa e trapalhona decisão da OMS sobre a Síndrome de Burnout

Estevam Vaz Lima*

 

Uma das dificuldades envolvendo o tema “Burnout” é que a noção ganhou status de dogma religioso. E, como tal, é indiscutível – trata-se de uma questão de fé. Entretanto, para aqueles que se reservam algum espaço para pensar sobre o assunto, há aspectos bastante interessantes a serem considerados.

A decisão da OMS de passar a nomear Burnout como “síndrome” é um deles. E a primeira impressão que se tem é que a confusão envolvendo o Burnout foi instalada dentro da própria Organização Mundial da Saúde, desde o momento em que decidiram anunciar a mudança na forma de descrever a síndrome: no dia 26 de junho de 2019 um porta-voz da instituição veio a público dizendo que Burnout passaria a ser considerado doença na CID 11. Quatro dias depois, outro porta-voz desfez a informação.

“Houve um mal-entendido. ‘Burnout ’ não foi de fato reconhecido pela OMS como uma condição médica. Posto isto, a importância do bem-estar no local de trabalho é bem compreendida pela OMS’, disse Christian Lindmeier, porta-voz da agência de saúde, ao Medscape Medical News.” Além do portal Medscape, outros órgãos da mídia também deram a notícia. Numa época em que as pessoas parecem muito mais propensas a reagir do que pensar e, consequentemente, manter em suas mentes aquilo que é mais sensacionalista, obviamente se esqueceram do desmentido do segundo porta voz e o noticiário do início deste ano só fala em Burnout como “doença”, especificamente “doença ocupacional”.

Mas este é apenas o começo da trapalhada. É preciso que o leitor entenda alguns aspectos da CID para que possa compreender o que aconteceu. A CID classifica doenças usando códigos que se iniciam com letras. A CID 10, por exemplo, classificava doenças até a letra S. A partir da letra T, codificava eventos variados, que vão de fraturas e intoxicações a “objeto estranho no ouvido”, “queda da própria altura em superfície coberta de neve”, “colisão entre bicicleta e veículo de tração animal”, “permanência prolongada em ambiente agravitacional”, etc..

O “Burnout” encontrava-se na subcategoria ”Problemas com a organização do seu modo de vida”, dentro do grande grupo “Fatores que influenciam o estado de saúde ou o contato com os serviços de saúde” (letra Z). O que as mídias se esquecem de dizer é que a Síndrome de Burnout vai continuar nessa mesma categoria dentro da CID 11 – ou seja, como eventos que não correspondem a doenças (agora codificada sob a letra Q).

Mas este ainda é apenas um pequeno ingrediente envolvendo a confusão em torno do “Burnout”. A OMS adotou os critérios do MBI (Maslach Burnout Inventory) para caracterizar a síndrome. O MBI é um questionário simples e ingênuo que identifica ou “diagnostica” Burnout em todo e qualquer respondedor, que ganha, no mínimo, o rótulo de portador de “Burnout leve”.

É fortemente identificado com o Burnout. (“Burnout é o que o MBI mede e o MBI mede o que é Burnout” diz Kristensen, pesquisador dinamarquês que criou o CBI – Copenhagen Burnout Inventory). Além disso, o MBI é rigidamente protegido por direitos autorais, seu uso exige pagamento, o que torna o Burnout, por tabela, a primeira “doença” da história sujeita ao pagamento de direitos autorais… Junte-se aí o fato de que a “síndrome” é caracterizada por pelo menos 140 sintomas. Schaufeli, o principal teórico do Burnout, compilou 132, encontramos mais oito.

Com isso tudo, temos uma boa medida da trapalhada em que se meteu a OMS: incluiu uma “doença” – que não considera doença (!!) – que acomete 100% das populações. Está incluindo na CID 11 a primeira “doença” protegida por direitos autorais e que, com seus 140 sintomas, corresponderia à mais surpreendente, bizarra e estranha índrome da qual já se ouviu falar.

Como se não bastasse, a OMS recomenda que sejam exluídos depressão, transtorno de estresse e ansiedade do “diagnóstico”. Ora, as diversas categorias de depressão e de transtornos de estresse estão justamente entre os cerca de 30 diagnósticos psiquiátricos que são engolfados e rotulados como “Burnout” pelo MBI! Durma-se com um barulho destes! Mas os crentes dormirão tranquilamente: trata-se de uma questão de fé, e pronto!

 

*Estevam Vaz de Lima é médico pela Escola Paulista de Medicina (UNIFESP); psiquiatra pela Associação Brasileira de Psiquiatria/Associação Médica Brasileira e psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise/International Psychoanalytical Association. Autor do livro “Burnout: a doença que não existe”