A guerra é mais um pretexto do governo para passar a boiada do ‘pacote da maldade’
Jessé Souza*
Uma enfermeira que foi contratada para ir até uma área de garimpo com a missão de tratar de garimpeiros feridos publicou um relato surpreendente em sua rede social, o qual foi deletado logo em seguida, por medo de represália ao ser orientada a tomar cuidado. Mas houve tempo suficiente para retratar a realidade do que ocorre dentro da Terra Indígena Yanomami, em Roraima.
Como o garimpo não deixou outra alternativa, muitos yanomami acabam cooptados ou praticamente obrigados não apenas a trabalhar no garimpo como também a defender os garimpeiros, exibindo armas para impor respeito. Conforme o relato, a frente de garimpo é uma imensa favela no meio da floresta, com barracas cobertas de lona que abrigam bares, comércio de alimentos e pontos de internet, onde os indígenas armados compõem o cenário.
Diante das atuais circunstâncias políticas, não há esperança de que esse quadro possa mudar não somente nas terras indígenas, mas outros garimpos ilegais em áreas ambientais, especialmente na Amazônia. Agora, o governo Bolsonaro usa a guerra na Ucrânia como argumento para aprovar a abertura de terras indígenas e ambientais para a exploração mineral.
Bolsonaro alega que o Brasil depende de fertilizantes da Rússia, cuja importação de potássio está ameaçada por causa da guerra, por isso aponta como solução a aprovação de um antigo projeto que inclusive foi rechaçado no passado por desrespeitar a Constituição. Trata-se do Projeto de Lei 191/2000, que facilita o garimpo, a mineração e o desmatamento em terras indígenas.
O pretexto da guerra é apenas mais uma oportunidade para passar toda a boiada no Congresso, que também está próximo de aprovar o PL 490/2007, que abre terras indígenas para a mineração, abre brecha para que indígenas sejam retirados de suas terras e impõe um marco temporal para novas demarcações.
Mas o “pacote da desgraça” é bem mais amplo, muito além do PL 191 e PL 490. Bolsonaro apresentou ao Congresso a Portaria 667, de 9 de fevereiro de 2022, apontado as prioridades do governo para votação no Legislativo, que atenta contra os direitos humanos, ambientais e indígenas no Brasil.
O pacote inclui o PL 3729/2004, que altera drasticamente as regras do licenciamento ambiental no país, o PL 528/2021, que regulamenta o mercado de carbono, e os PLs 2633/2020 e 510/2021, que formam o “PL da Grilagem”, visando anistiar e regularizar invasões de terras públicas.
Uma dessas propostas consideradas prioridades foi aprovada imediatamente pela Câmara no mesmo dia: o PL 6299/2002, que ficou conhecido como o “PL do Veneno”, que visa flexibilizar ainda mais a legislação sobre a venda e uso de agrotóxicos, além de enfraquecer a atuação da fiscalização pelos órgãos como Ibama e Anvisa.
Enquanto toda a base aliada tenta passar o trator no Congresso, os reflexos do garimpo ilegal avançam na Amazônia. No Pará, o paraíso conhecido como “Caribe brasileiro”, Alter do Chão, em Santarém, teve suas águas poluídas. Os garimpeiros tentaram se estabelecer no Rio Madeira, em Rondônia. Em Roraima, comunidades indígenas inteiras correm o risco de desaparecer, devoradas pelas frentes garimpeiras.
Em Roraima, a situação é muito pior, pois o garimpo tem obrigado famílias inteiras de yanomami a cada vez mais perambular pelas ruas da Capital, que por sua vez vem recebendo centenas de imigrantes venezuelanos, diariamente, que chegam fugidos de seu país em busca de comida.
As autoridades locais sequer tratam dessa questão, e um número cada vez maior de sem-tetos venezuelanos se amontoa no entorno da Rodoviária Internacional de Boa Vista. Se o mundo se assombra com o deslocamento da população da Ucrânia, a Venezuela sequer é lembrada.
Tempos sombrios…
*Colunista