Opinião

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A ANCESTRALIDADE BRASILEIRA E O CASO MACUXI

Matheus Oliva da Costa

Professor do curso de Filosofia da UERR

Relendo o livro O Banquete dos Deuses, de Daniel Munduruku, percebi que, ao contrário do povo munduruku, a maioria de nós brasileiros que não nasceram em comunidades indígenas não tem clareza sobre quem são nossos antepassados. Mais do que uma palavra pouco usada do nosso vocabulário, os “antepassados” indicam o nosso passado não apenas cultural, mas também biológico e psicológico. No entanto, instigado em entender esse assunto, nos momentos quando tentei conversar com as pessoas ao meu redor sobre isso, o que recebi delas foi uma enorme apatia ou pronta rejeição. Até hoje me espanta o fato de como a maioria de brasileiros(as) não se importam sobre suas raízes, suas origens, seu passado enquanto povo mas também o seu passado familiar. Aqui busco responder a essa pergunta: o que faz brasileiros terem tantas dificuldades em cultivar suas memórias ancestrais? Vamos tentar entender isso pelo caso roraimense, ou, como é mais comum dizer por aqui, dos “macuxis”.

Roraima é o estado mais ao norte do Brasil. Se aceitarmos a ideia de que existem vários “brasis” dentro do Brasil, ou seja, diversas culturas singularmente brasileiras dentro do território nacional, podemos dizer também que este estado é o “Brasil do extremo norte”, como dizem em algumas camisetas turísticas. Isso significa que aqui também é um caso específico de cultura local, com características únicas, se vistas em conjunto. Por exemplo: uma culinária que abrange elementos indígenas, nordestinos, venezuelanos e norte-americanos; sotaques e expressões como “tá lêzo”, “curumim”, “galeroso”, “ciscado”; ou a forte presença de indígenas ou seus descendentes em vários ambientes sociais.

O antropólogo argentino Néstor Canclini tem mostrado há algumas décadas que toda cultura é híbrida, e o caso macuxi não seria diferente. O próprio nome como as pessoas da capital Boa Vista ou de todo o Estado se denominam, “macuxis”, revela a hibridação com a cultura indígena homônima predominante no local onde fundaram a capital do estado. Ao mesmo tempo, é facilmente observável aqui um aspecto conflitante com as culturas indígenas, poderíamos falar mesmo numa rejeição sistemática dessa filiação. Um exemplo disso é a comunidade de Facebook “Boa Vista de Antigamente”, em que constantemente imagens antigas da cidade mostram uma busca por aproximação com elementos das culturas do sudeste brasileiro, especialmente seus times de futebol, bem como uma clara busca por mostrar que aqui tem sim “civilização”, e não tem somente indígenas (numa clara negação das próprias culturas indígenas como uma forma de civilização humana). Assim, o roraimense sabe das suas origens indígenas, algumas vezes até deixa isso bem explícito, porém, não parece se orgulhar dessa origem cultural: a identidade roraimense é marcada por um conflito interno.

O caso macuxi ou roraimense deixa bem explícito um conflito que também aparece em outras versões em todo o território nacional. A maioria de nós brasileiros formou-se por uma violenta ambiguidade: somos filhos do agressor e da vítima, do colonizador e do colonizado, da casa grande e da senzala, da maioria e também da minoria. Acredito que isso nos faz querer evitar pensar sobre nosso passado, já que é traumatizante relembrar os conflitos dos nossos pais e mães culturais. Que filho quer lembrar que os seus pais ficavam brigando a todo o momento, e que, caso se encontrarem, brigarão novamente? Mais do que isso, que um lado da sua família “pegou no laço” sua companheira, um jargão muito usado para se referir à colonização violenta de mulheres indígenas em famílias não-indígenas. Certamente não parece algo agradável relembrar esses traumas. Psicanaliticamente, poderíamos dizer mesmo que estamos no final de um período de latência desse trauma, e aos poucos esse conflito interno está voltando à tona em nossa consciência social, como vemos na ascensão das causas dos movimentos negros e indígenas, que tem cobrado mais respeito e visibilidade.

Outro caso mais recente abriu uma ferida que está ainda exposta na psique dos roraimenses: a crise migratória venezuelana. Apesar do Brasil, e Roraima mais ainda, ser composto por pessoas de vários lugares do mundo (indígenas, africanos, europeus, asiáticos etc.), a história tem mostrado que somos bem seletivos em nossa recepção, não recebemos franceses e haitianos da mesma forma. Venezuelanos em Roraima não escapam dessa seletividade cultural brasileira: pude notar que raramente um roraimense come comida venezuelana como a arepa ou o pepito, e até a vê com certo desprezo (tanto quanto vê a culinária indígena), ao passo que valorizam pizzas e sanduíches. Claro, existem diferentes paladares, e não precisamos comer tudo que há. Mas é realmente sistemática a rejeição de grande parte dos roraimenses à comida venezuelana. O que pode ser a razão para roraimenses abraçarem a pizza e não a arepa? O sanduíche e não o pepito? Acredito que roraimenses, como a maioria dos brasileiros, não parece lembrar que faz parte da América Latina, e apresenta até uma rejeição explícita à cultura popular latino-americana. Muitos de nós se veem como europeus, seu modelo idealizado de “civilização”, o que seria o critério básico de seleção do que é aceitável ou não culturalmente. Novamente temos aqui a ambiguidade identitária: “somos latino-americanos, mas não queremos ser”.

Será mesmo possível negar as suas raízes culturais? O filósofo cubano Raúl Fornet-Betancourt, uma das referências mundiais da filosofia intercultural, defende que a cultura é o nosso ponto de apoio (punto de apoyo) existencial, ou seja, existimos a partir da nossa cultura, ainda que ela não nos limita. Isso significa que, por um lado, esse ponto de apoio que é a cultura sempre nos acompanhará e pode servir de base para nossas ações, por outro lado, temos escolhas pessoais apesar desse ponto de apoio que marcam a nossa história e personalidade. Assim, negar nossas raízes culturais é negar a nossa base, negar parte da nossa existência, e não parece nem um pouco saudável.

Diante de tudo isso voltamos a nossa pergunta: “o que faz brasileiros terem tantas dificuldades em cultivar suas memórias ancestrais?” A partir do caso macuxi ou roraimense, podemos notar uma crise identitária profunda, pois existencial. Temos uma ambiguidade radical em nosso ser, mas que está claramente em conflito: somos X, mas não queremos ser X; temos características A, mas gostaríamos de ter as características B. Os motivos disso podem ser, em boa medida, o trauma da nossa violenta constituição enquanto povo. Lembram que Fornet-Betancourt também afirma que, além do ponto de apoio cultural, temos as escolhas pessoais? Ao que parece, nós, brasileiros, temos escolhido o lado do colonizador, do modelo civilizacional europeu, e, por conseguinte, do grilheiro de terras, da mineradora, do dono de garimpos, do político de família tradicional, e temos rejeitado nossa herança indígena, a cultura dos nossos hermanos venezuelanos, o
u mesmo nossa nova cultura local e hibrida.

Se para uma pessoa não é saudável essa negação de si mesma, o que dizer de uma nação inteira? Por quanto tempo continuaremos em autonegação? Por isso te convido a pesquisar sobre suas origens, sobre o que constituí o ponto de apoio cultural que é a sua base para fazer escolhas ao longa da vida.

Judia, mas ensina

Afonso Rodrigues de Oliveira

“Bendita crise que vai me ensinar o que é verdadeiramente importante”. (Mirna Crzich)

Não é brincadeira o que essa crise tem nos judiado. Sofrimentos que fazem parte do desenvolvimento. O importante é que saibamos conviver com as crises que nos ensinam. A “prisão domiciliar”, legalizada, causada pelo confinamento dentro de casa por conta do covid-19, é torturante. Sobretudo para quem tem uma vida corrida, no cotidiano. Confesso que faço uma força titânica para controlar o humor. Ainda bem que eu mesmo já me treinei.

Mas vamos parar com o blá-blá-blá, e vamos ao assunto. Três anos antes da chegada da pandemia, afastei-me de Roraima e me instalei na Ilha Comprida, no litoral sul, de São Paulo. Independentemente da chegada da crise, tive que voltar a Roraima, por motivos particulares. E quando cheguei a Boa Vista tive que me trancar em casa, mesmo depois da terceira vacina. E a única coisa que faço durante os dias, é: bater esse papo com você, lavar a louça do café, ler alguma coisa, varrer o quintal, e alimentar os cachorros. Uma vida nada desejada e que é preocupante. Mas, no final do dia fecho a cortina, tomo banho e tento dormir. Mas estou levando numa boa. Acredite.

No final da semana li, na página de Opinião, da Folhabv, a matéria fantástica do Éder Santos. Acredite, a saudade bateu forte. Senti uma necessidade forte de rever pelo menos duas pessoas importantíssimas para mim, e que influenciaram, e muito, minhas atividades no ambiente da cultura: Alex Pizano e Tiago Bríglia. Dois grandes companheiros entre tantos outros que se eu fosse mencioná-los agora, não teria espaço suficiente. A pandemia está pegando o barco, e certamente nos deixará em breve, está me fortalecendo o desejo de rever tantos amigos e companheiros que me fizeram muito feliz, e estão alimentando a amizade permanente.

Claro que a pandemia, como chibata da história, está me ensinando a aprender com os trancos. Que é o que todos nós devemos fazer para sermos felizes. Um abração “quebra-costela” para todos os meus amigos dos tempos do saudoso movimento cultural. Estou me exercitando para novas e longas caminhadas, para me encontrar com todos vocês, para matar a saudade que me invade o coração. Gostaria de citá-los aqui, mas não há espaço suficiente. Mesmo porque o espaço suficiente para manter o grupo, está aqui, do lado esquerdo do peito. Espaço pequenininho, mas que nunca será suficientemente preenchido. Há sempre vagas.

Estamos iniciando mais uma semana que, com certeza, será muito importante no nosso desenvolvimento cultural. É só não perder tempo com problemas. Pense nisso.

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