Jessé Souza

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Uma pequena radiografia que mostra como o título de Mérito Indigenista é um escárnio

Jessé Souza*

Chega ser uma afronta a decisão do ministro da Justiça, Anderson Torres, que concedeu ao presidente Jair Bolsonaro (PL) a medalha do Mérito Indigenista, conforme portaria publicada no Diário Oficial da União de quarta-feira, 16, pelos “serviços relevantes, em caráter altruístico, relacionados com o bem-estar, a proteção e a defesa das comunidades indígenas”.

Além de afrontoso e incoerente, é um título contraditório exatamente pelas atitudes anti-indígenas de Bolsonaro desde quando ainda pretendia ser candidato a presidente e, após eleito, pelas decisões tomadas em seu governo, com uma agenda que retira direitos históricos e constitucionais dos povos indígenas. Ele nunca escondeu sua verdadeira posição e assim foi eleito.

Quando era pré-candidato à Presidência da República, em uma entrevista na cidade de Dourados (MS), em fevereiro de 2018, o então deputado federal  Bolsonaro afirmou que, se vencesse a eleição, não demarcaria “um centímetro a mais para demarcação de terras indígenas”. E assim tem cumprido a promessa até hoje. E repetiu várias vezes, inclusive quando veio a Roraima, a defesa em favor do garimpo.

Em uma de suas primeiras decisões assim que assumiu, foi desmobilizar e desestruturar a Fundação Nacional do Índio (Funai), que se tornou um órgão indigenista não apenas figurativo como também um órgão que passou a atuar para retirar benefícios e retardar políticas públicas para as comunidades indígenas, em especial em relação à proteção de terras indígenas.

Em 2020, Bolsonaro chegou a vetar a obrigação do governo de fornecer água potável, materiais de higiene e leitos hospitalares aos povos indígenas durante a pandemia de Covid-19, decisão estas que provocou muitos protestos a ponto de o veto ter sido derrubado pelo Congresso.

Bolsonaro também adotou uma agenda antiambientalista, desestruturando os órgãos ambientais (Ibama e ICMBio) e órgãos de pesquisas ambientais e espaciais (Inpe), bem como passou colocou a defesa do garimpo e da mineração dentro de sua agenda prioritária, apresentada ao Congresso no início deste ano.

Desde o início, o governo vem articulando projetos que retiram direitos indígenas, quando reuniu todos os argumentos em um único, considerado o pai de todas as maldades contra os povos indígenas, que é o Projeto de Lei 490, que acaba com demarcações, abre as terras indígenas para o garimpo e o agronegócio, além de permitir que comunidades indígenas sejam removidos de suas terras.

Como parte dessa estratégia, este ano já foram protocolados mais dois decretos que colocam em grave risco os direitos dos povos indígenas: o Decreto nº 10.966 e o Decreto nº 10.965, ambos de 11 de fevereiro de 2022, os quais criam incentivo à mineração artesanal em pequena escala e facilita os critérios para a análise dos processos e concessão de títulos minerários pela Agência Nacional de Mineração (ANM).

O  Decreto nº 10.966 cria o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala, bem como institui a Comissão Interministerial para o Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala. Esse decreto estimula os grandes empresários da mineração ilegal na Amazônia, aqueles que estão por trás de toda violência, invasão e destruição de terras indígenas e Unidades de Conservação daquele bioma.

O Decreto nº 10.965  simplifica critérios para a análise dos processos e concessão de autorização para pesquisa mineral pela ANM. Caso a ANM não se manifeste em 60 dias sobre os pedidos, a autorização será validada automaticamente, sem a devida análise legal. É o sinal verde para que muitas novas áreas de garimpo sejam autorizadas, representando  graves impactos socioambientais e mortes na Amazônia, como já vem ocorrendo na Terra Indígena Yanomami, em Roraima.

O presidente também publicou a Portaria nº 667, de fevereiro de 2022, apresentando a agenda prioritária do governo, que inclui o Projeto de Lei nº 191/2020, o qual tem a finalidade de regularizar a mineração em terras indígenas. Dentro dessa agenda prioritária está aprovação do Projeto de Lei 6299/2005 (PL do Veneno), aprovado rapidamente na Câmara,  o PL 490/2017, que impede novas demarcações de terras indígenas, e o PL 191/2020, que autoriza a mineração em terras indígenas.

Para coroar seu governo explicitamente anti-indígena, Bolsonaro aproveitou o momento de guerra, quando a Rússia invadiu a Ucrânia, e voltou a defender o PL 191/2020,  que permite a mineração em terras indígenas, alegando que seria necessário para diminuir a dependência brasileira pelo potássio importado do Leste Europeu. Porém, está comprovado que a maior parte das minas desse elemento ficam fora das terras indígenas no Amazonas.

Como se pode observar nesta pequena radiografia de ataques constantes do governo aos direitos indígenas, é ultrajante conceder a Bolsonaro a medalha do Mérito Indigenista. Ainda que se entendam os posicionamentos favoráveis de quem defende a mineração, mas é fundamental que esse assunto seja discutido amplamente pela sociedade e que sejam ouvidas as comunidades indígenas.

O que o governo vem fazendo é um verdadeiro “tratoraço”, atropelando todos os direitos garantidos pelos povos indígenas a partir da Constituição de 1988. É inconcebível que se tente limpar a imagem do presidente a fim de ludibriar a opinião pública em ano eleitoral, enquanto Bolsonaro vem repetindo abertamente, desde quando era pré-candidato, que é um anti-indígena declarado. É ultrajante. 

*Colunista