Jessé Souza

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O gênero do chifre e da cachaça que serve aos propósitos do conformismo

Jessé Souza*

Não se trata de partidarizar os gêneros musicais ou impor um sectarismo entre músicas de urbanóides e de quem se identifica com vida do homem do campo. Mas é possível explicar por que o sertanejo colou muito bem com a política de extrema direita que está no poder, com os artistas desse gênero musical declarando apoio explícito ao bolsonarismo.

Mas, antes de ir direto ao ponto, é preciso fazer um resgate histórico desse gênero musical que embalou e embala a vida de boa parte dos brasileiros. O sertanejo de raiz era conhecido como “música caipira” a partir de 1929, quando o pesquisador, compositor, escritor e humorista Cornélio Pires decidiu espalhar os costumes caipiras em forma de música e encenações teatrais para outras regiões do Brasil.

Bancando tudo com o dinheiro do próprio bolso, ele viajou pelo interior paulista, norte e oeste paranaenses, sul e triângulo mineiros, sudeste goiano e mato-grossense apresentando seu talento, até gravar um disco que fez tanto sucesso que se esgotou rápido nas lojas. As letras tratavam sobre a beleza bucólica e romântica da paisagem rural, retratando o modo de vida do homem do interior. Esse gênero intensificou-se ainda mais durante as transformações provocadas pelo êxodo rural  na década de 1970 e foi se modificando. 

Então, de 1929 a 1944 era conhecida como música caipira (sertaneja raiz). De 1945 até os anos 60 foi uma fase de transição. Do final dos anos 60 até a atualidade, passou a ser conhecida com música sertaneja romântica. E assim o estilo caipira foi adaptado para o moderno, chegando aos anos 80 como o primeiro gênero de massa produzido e consumido no Brasil, puxado pelas duplas Chitãozinho & Xororó e Leandro & Leonardo, com suas músicas tocadas em todas as casas e nos botecos da esquina.

Na atualidade, o sertanejo deixou de ser um gênero que retrata a vida simples do homem do campo, com seus amores e desventuras, para se tornar um sertanejo de amores traídos (chifre e cachaça), que nunca defendeu as pautas políticas do pequeno agricultor, servindo para anestesiar toda uma geração como seus fracassos matrimoniais e suas decepções amorosas regadas a muita cachaça, inclusive passou a servir para a mulher se vingar (“Toma aqui seus 50 reais”).

É por isso que o sertanejo do chifre e da cachaça serve muito bem aos propósitos políticos da extrema direita, que repudia qualquer tipo de protesto político, que é berço do rock brasileiro nos anos 80 (mas esse é assunto para o artigo de amanhã). Temos uma massa consumidora desse gênero que serve ao propósito de alienação, que não questiona a realidade (especialmente a realidade sofrida do homem do campo), enquanto o governo suprime direitos dos trabalhadores, tenta escancarar as leis ambientais para o avanço do agronegócio, inclusive dentro das terras indígenas, e arrocha o contribuinte como resultado da política econômica em favor dos banqueiros e acionistas da Petrobras.

Os cantores sertanejos da elite sentem-se tão à vontade com essa política do arrocha na vida dos brasileiros pobres, os mantendo anestesiados com suas desgraças amorosas regada ao alcoolismo, que não hesitavam em criticar os artistas de outros gêneros musicais e de outras formas de arte que se valem da Lei Rouanet para se manter e manterem milhares de trabalhadores que atuam nas bandas e grupos artísticos.

Isso até o país descobrir que essa elite sertanejeira se esbaldava com verbas públicas pagas com dinheiro de prefeituras pobres do interior desse imenso país, sem critério transparente e sem licitação pública. O “Embaixador do sertanejo” Gusttavo Lima até apareceu chorando para dizer que esse dinheiro é usado também para pagar os milhares de pais e mães de famílias que trabalham em sua banda e na banda dos demais artistas

Até então, as estrelas do sertanejo nunca pensaram nos pais e mães de família que trabalham nas bandas dos artistas que dependem da Lei Rounet, com uma grande diferença de que esta lei é uma renúncia fiscal de grandes empresas que bancam os projetos dos artistas mediante uma série de critérios, enquanto as bandas sertanejas recebem dinheiro público que é pago direito para o bolso dos artistas sem qualquer tipo de fiscalização.

Aqui está o “xis” dessa questão, em que a elite sertanejeira se beneficia de dinheiro público de forma direta e escancarada, enquanto alimenta com suas músicas um estado de letargia de uma grande parcela da população. É o conformismo estratégico que serve aos propósitos políticos de quem está no poder, enquanto temos uma geração ocupada com suas desgraças amorosas e a traição na casa do vizinho.

E o país que se lasque em chifre e cachaça.

*Colunista