O que há por trás de uma embaixadora de mentirinha: a ‘venezuelização’ está a caminho
Jessé Souza*
Foi-se o dia em que somente a arte imitava a vida. Agora a vida é que segue imitando a arte, como é o caso do autodeclarado governo na Venezuela. No Brasil, em fevereiro de 2019, o ator José de Abreu lançou, na rede social Twitter, o mais inusitado personagem em mais de meio século de sua carreira artística, ao se autoproclamar presidente do Brasil. Era uma brincadeira inspirada no autodeclarado presidente venezuelano Juan Guaidó, em que o artista brasileiro, vivendo na Grécia, se valia para fustigar o presidente Jair Bolsonaro de longe.
A brincadeira perdeu a graça depois que a extrema direita brasileira deixou de se incomodar e os bolsonaristas cessaram a ira contra Zé de Abreu. Na vida real, a decisão de Guaidó, então líder da Assembleia Nacional da Venezuela, de se autodeclarar presidente, perdeu o sentido faz um certo tempo. Porém, o que hoje parece uma piada, já diluída pelos fatos políticos, ainda é levado a sério pelo governo brasileiro e por setores da imprensa, a ponto de aceitarem como se fosse real o papel da embaixadora no Brasil do imaginário governo Guaidó, Maria Teresa Belandria.
A Jovem Pan News, que não esconde sua defesa presencial ao atual governo bolsonarista, deu voz à imaginária embaixadora venezuelana, a qual teve a missão de tentar amenizar a importância da destruição provocada pelo garimpo ilegal na Amazônia brasileira ao compará-lo com a realidade do garimpo altamente predatório do lado venezuelano. Obviamente, pelo tom da entrevista à TV a cabo brasileira, a imaginária embaixadora tentou também, por tabela, amenizar a responsabilidade do governo brasileiro pela omissão no combate ao garimpo ilegal.
O argumento da atriz política é que a imprensa internacional não dá a mínima atenção ao que se passa no garimpo ilegal na Amazônia venezuelana, da mesma forma que acusa a omissão do governo brasileiro. Isso até faz sentido, mas não invalida o papel exercido pela imprensa ao cobrar vorazmente o governo brasileiro. Absolutamente não. Não fosse essa atuação incisiva, já teria ocorrido a “venezuelização” do garimpo brasileiro ilegal, especialmente na Terra Indígena Yanomami.
Na Venezuela, a corrupção é institucionalizada pela Guarda Nacional e por todas as demais forças policiais, com o garimpo sendo controlado pelo crime organizado com autorização do governo tirano de Nicolás Maduro com apoio dos militares. Nenhum jornal teria o comportamento suicida de enviar um correspondente para denunciar as atrocidades do garimpo ilegal na Venezuela.
Caso ocorresse, certamente iria ocorrer o mesmo, ou até pior, como fizeram no Vale do Javari com o jornalista inglês e o sertanista brasileiro. A Venezuela é um país sem lei, nas mãos de tiranos, a ponto de sequer a imprensa livre venezuelana ter resistido. E por isso está calada e jamais se atreveria a denunciar o garimpo ilegal. Se a imprensa brasileira e internacional não tivessem se mobilizado no caso do bárbaro assassinato do jornalista estrangeiro e do sertanista, aquele seria o passo definitivo para a “venezuelização” da ação do narcotráfico naquela região da Amazônia.
A fala da embaixadora venezuelana imaginária também teve como foco fazer a opinião pública acreditar que o ouro ilegal da Venezuela financiaria os movimentos de esquerda na América Latina, sem apresentar qualquer prova, a não ser se utilizar de teorias conspiratórias alimentadas pela extrema direita que se vale de fake news como modus operandi. É um argumento não apenas político favorável à extrema direita brasileira, como também visa legitimar que o garimpo ilegal brasileiro seria “menos pior” ou até mesmo “inocente”.
O garimpo ilegal brasileiro já está a caminho de se “venezuelizar”. Lá, em 2016, o governo venezuelano editou decreto criando o Arco Minerador do Orinoco, uma faixa que ocupa 12% do território nacional, a qual Nicolás Maduro destinou à exploração gerimpeira, sem consulta às comunidades indígenas, dando início à maior destruição já vista, dominada pela corrupção oficial e o narcotráfico. Apenas 30% do ouro vai para o governo venezuelano. O restante vai para as máfias.
Aqui, no Brasil, o governo brasileiro tenta liberar o garimpo de todas as formas, sem consulta, por meio de decretos e projetos de lei enviados ao Congresso dominado por aliados, atropelando o que determina a Constituição. Valendo ressaltar que o crime organizado já se apoderou do garimpo ilegal na Terra Yanomami em Roraima. E a facilitação de compra de armas beneficiou milicianos e faccionados, que se associam a clubes de caçadores, atiradores e colecionadores.
Como podemos notar, não há motivos para acreditar na “inocência” do garimpo ilegal brasileiro frente às atrocidades que ocorrem na Venezuela. Lá só se chegou a esse nível porque o governo liberou a garimpagem atropelando as comunidades indígenas e se aliando ao crime organizado, o qual encontra respaldo na corrupção institucionalizada dos militares e das autoridades governamentais. Por aqui, tudo está sendo encaminhado para o mesmo, em um cenário muito parecido ao adotado pelo governo tirano da Venezuela. Alguma dúvida? Ou vamos seguir dando crédito a uma embaixadora de mentirinha que quer legitimar o garimpo ilegal a partir de teorias conspiratórias?
*Colunista