Opinião

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A escola de Kyoto

João Paulo M. Araujo

Professor no curso de filosofia da UERR

Delimitar o campo de atuação filosófica nunca foi uma tarefa fácil. Desde o seu surgimento, os filósofos se perguntam sobre a natureza da filosofia, isto é, qual o seu objeto, se ela é um constructo genuinamente grego, se sofreu influência de outros povos, e mais, se outros povos também possuíam uma filosofia. Acerca deste último tópico, não é de total acordo entre os filósofos se a atividade filosófica pode ser entendida e constituída como desvinculada da tradição ocidental que começou na Grécia antiga. Quando a filosofia nasce no séc. VI a.C. quase que concomitantemente ao seu desenvolvimento surgia também pensadores como Confúcio na China e Buda (Gautama) na Índia. Apesar de suas particularidades e, sobretudo, de questionarmos em que medida Confúcio de Buda seriam filósofos, seus ensinamentos até hoje influenciam profundamente grande parte do oriente, Confúcio em questões voltadas para a moral e Buda (além de questões morais) questões de ordem metafísicas de implicação religiosa.

Com a Escola da Kyoto, cujo o fundador e principal expoente foi Nishida Kitaro (1870-1945), temos no século XX o que poderíamos chamar de um encontro moderno de tradições de pensamento. Nishida conhecia a tradição de pensamento ocidental assim como também várias de suas línguas. Se aprimorando nessa tradição, ele tentou usar ideias e técnicas filosóficas ocidentais para descrever o espírito da cultura e do pensamento oriental com particular interesse no pensamento japonês. Sua primeira obra filosófica chamada Zen no kenkyu data de 1911 (no inglês traduziram como An inquiry into the good) e recentemente ganhou uma tradução no Brasil com o título Ensaio sobre o bem (editora Phi). Trata-se, segundo Robert E. Carter (2013, p. 4) de “um livro que capturou a imaginação dos japoneses porque os apresentou a ideias ocidentais plenamente desenvolvidas, ao mesmo tempo em que afirmava com notável clareza e força o que era próprio sobre os modos de pensar japoneses”. Portanto, com esse trabalho, ao mesmo tempo que Nishida desenvolvia um rico diálogo do pensamento japonês com o pensamento filosófico ocidental, ele duplamente, apresentava para os japoneses a filosofia tal como era estudada no ocidente e, por outro lado, apresentava para os ocidentais o pensamento japonês tal como era compreendido em sua cultura.  

Como observado, há em Nishida um compromisso de apresentar aos leitores ocidentais o pensamento japonês, de tentar traduzir o pensar e o estar no mundo numa linguagem ocidental. Todavia, nesse jogo de adequações conceituais pode-se cometer algumas caricaturas ou simplificações como, por exemplo, a ideia de Nishida segundo a qual as culturas ocidentais são fundadas no pensamento do ser enquanto que as culturas orientais seriam fundadas no pensamento do nada. Apesar de ter possuído uma forte formação no zen budismo, Nishida não escreve como um zen budista, do contrário, estaria apenas fazendo exegese religiosa. O seu contato com a filosofia ocidental o transformou em algo que nem pode ser considerado totalmente zen budismo nem filosofia ocidental, sua perspectiva própria de enxergar o pensamento japonês o torna muito mais um interprete filosófico de sua cultura do que propriamente um religioso.

Entretanto, se há algo que distingue a filosofia da escola de Kyoto e a filosofia ocidental (ao menos grande parte dela), é que não há na escola de Kyoto qualquer separação nítida entre filosofia e religião, isso faz da escola de Kyoto também, um tipo de filosofia da religião. Algo muito parecido com o que tínhamos com a filosofia cristã na idade média, mas sem a necessidade de fundar uma teologia ou de promover uma constante defesa e afirmação de dogmas que, em última análise, terminaria numa discussão em torno da relação entre fé e razão, homem e Deus, sujeito e objeto, etc. De acordo com James W. Heisig (2001) em seu The Philosophers of Nothingness, o surgimento da escola de Kyoto inaugura e marca um divisor de águas na história intelectual, uma vez que esse grupo de filósofos além de apresentar uma contribuição filosófica e original do Japão para o ocidente, o faz de uma perspectiva fortemente oriental e também, acrescento (como já foi dito), com um diálogo completamente inteirado de nossa tradição filosófica. Essa apropriação do nosso vocabulário filosófico ocidental não é apenas perceptível em Nishida, mas também em outros expoentes da escola de Kyoto como, por exemplo, Daisetsu Teitaro Suzuki que em seu clássico Introdução ao zen budismo, estabelece linhas de discussão entre o nada no zen e o niilismo ocidental.

Muitos estudiosos (e.g., Heisig, Masao Abe, Carter) vão chamar atenção para o pano de fundo budista da escola de Kyoto. Todavia, vale ressaltar que o budismo não é a única representação religiosa no Japão, tendo que se dividir com visões xintoístas, taoístas (embora em menor proporção) e confucionistas (sendo o confucionismo mais um código moral do que religioso). No que concerne ao pano de fundo budista, este constitui o próprio motor de suas discussões. Todavia, assim como o cristianismo, o budismo não é um bloco monolítico de interpretações, há muitas escolas com perspectivas bem distintas. Enquanto que em Nishida temos como pano de fundo o zen budismo, outros filósofos da escola de Kyoto como, por exemplo, Tanabe Hajime rejeita a abordagem zen propondo a escola Shin (terra pura) como inspiração. Ainda outros filósofos como Watsuji Tetsuro, que aparentemente não adota explicitamente uma perspectiva religiosa, fica claro nas entrelinhas que sua filosofia surgiu de um ponto de partida budista. Mesmo com o pressuposto budista, não é intenção desses filósofos estabelecer uma filosofia do budismo, mas sim, se utilizar dos elementos budistas além de outras ferramentas filosóficas para tentar compreender e descrever a cultura japonesa, ou seja, seu modo de pensar e ser no mundo. A escola de Kyoto estava no início do século XX tentando desenvolver uma filosofia genuinamente japonesa, algo parecido com o que estamos tentando fazer hoje no Brasil, onde é cada vez mais é notório o esforço para um pensar filosófico genuinamente brasileiro.

Em termos ocidentais, o pensamento filosófico pode se apresentar sobre inúmeros aspectos (sistemáticos ou assistemáticos) desde que possua um certo rigor e consistência em seus desdobramentos. É nesse sentido específico que muitas vezes separamos filosofia de religião. O pensamento filosófico deve, numa certa medida, nos conduzir a clareza conceitual e a verdade (independente do critério de verdade que estivemos pensando). Se essa perspectiva tem o poder de transformar nosso ser, isto é, nossa consciência acerca das coisas,
então a filosofia ocidental se aproxima do ideário do pensamento japonês tal como está configurado na escola de Kyoto. Aliás, diferentemente de nós ocidentais onde a religião é baseada na fé e a filosofia na razão, para os filósofos japoneses, “a religião não é uma questão de fé ou razão, crença ou dogma, mas de experiência, o tipo de experiência que é verdadeiramente transformadora, do tipo que pode verdadeiramente fazer com que se veja a si mesmo e o mundo de forma diferente” (CARTER, 2013, p. 7). O próprio Nishida chega a desenvolver uma filosofia da experiência a qual ele chamou de “experiência pura”. Nishida abre o primeiro capítulo de seu
Zen no kenkyu (Ensaio sobre o bem) discutindo a noção de experiência pura: “Experimentar significa conhecer os fatos tal como eles são, conhecer de acordo com os fatos, renunciando completamente às próprias invenções” (NISHIDA, 1990, p. 3). Aproximando-se ora da fenomenologia, ora do próprio conceito de experiência de William James, Nishida propõe que, ao menos por algum momento, tentemos experimentar as coisas sem as roupas de nossa linguagem ou razão. Para nós ocidentais desprovidos de técnicas de meditação oriental, parece uma tarefa impossível. Talvez, seja essa a chave para a experiência budista do nada em contraposição a experiência filosófica do ser. Por isso, no que concerne a originalidade da escola de Kyoto, faço das palavras James Heisig (2001, p. 9) as minhas, quando ele afirma que “Os filósofos da escola de Kyoto nos deram uma filosofia mundial, que pertence tão legitimamente à herança quanto as filosofias ocidentais com as quais lutaram e das quais se inspiraram”.

Leve a dia vivendo-a

Afonso Rodrigues de Oliveira

“Para que levar a vida tão a sério, se a vida é uma alucinante aventura da qual jamais sairemos vivos”. (Bob Marley)

Há tantas coisas na vida que nos fazem bem, e nem sempre lhes damos atenção, nos dias vividos sem percebermos que estamos vivendo-os. Isso até pode parecer tolice, e não deixa de ser quando não nos atentamos. Para que levar a vida tão a sério? O importante é que sejamos sérios conosco mesmo e consideremos a vida como uma tarefa a ser cumprida. E como cumprir a tarefa é tarefa de cada ser humano. Afinal não somos mortais. Nosso corpo morre, nós saímos dele e procuramos outro para nos acomodarmos e voltar à Terra. Simples pra dedéu.

Às vezes somos forçados a viver momentos desagradáveis, e não estamos prontos para encará-los. E encarar os maus momentos não quer dizer que devemos lutar com eles. O que devemos mesmo é não lhes dar bolas, e aprender com as tentativas deles. Eles só são maus para quem não sabe encará-los. Lembrei-me disso ontem, quando ia pela rua e fui “atacado” por uma cadelinha bem bonitinha, peludinha e chatinha. O carro parou, a porta se abriu e ela, a cadelinha, pulou no asfalto e partiu contra mim, numa barulheira ensurdecedora. Mas eu nem dei a mínima importância à atitude dela. Ela chegou até mim, esfregou o focinho na minha calça, e continuou latindo, como late uma cadelinha bonitinha e chatinha. Continuei caminhando sem dar a mínima atenção à cadelinha. De repente uma senhora saiu do volante, e assustada gritou:

– Carolina… para com isso, minina.

A cadela parou de passar o focinho na minha calça, mas continuou gritando. A senhora sorriu pra mim e falou, meio encabulada:

– Ela é assim mesmo.

Sorri e segui. Caminhei, pensando sobre os cães e os covardes. São iguais. Atacam quando veem que você está com medo deles. E quando percebem que você não está com medo, ficam na deles. Mas os cães muitas vezes agem como humanos. Ali pertinho do supermercado tinha um cãozinho que tentava me atacar, sempre que eu passava pela calçada. Quando ele viu que eu não lhe dava atenção, ficou na dele. Até que um dia, eu vinha com o pão do para o café da tarde e quando passei, o cachorrinho estava deitado e percebi que ele me olhava estranho. Quando passei, ele levantou-se veio de mansinho, abocanhou meu bubum, arrancou o bolço da calça e saiu correndo. Entrou pelo portão e ficou me olhando. Segui sorrindo, com o bumbum arranha e o bolso arrancado. No dia seguinte dei uma bronca nele e ficou por isso mesmo. Afinal, ele mostrou o que realmente era. Somos todos da mesma origem. Estamos cada um na sua. Vamos viver a vida. Pense nisso.

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