A Sociedade Petalógica do Século 19 e a sociedade patológica de hoje
Jessé Souza*
O ano era 1830 quando um grupo de intelectuais do Rio de Janeiro, que seguida vezes foi a Capital desde os tempos de Colônia, decidiu criar a Sociedade Petalógica do Rossio Grande, que reuniu escritores como Machado de Assis e Joaquim Manuel de Macedo, o jornalista e político Quintino Bocaiúva (1836-1912), o magistrado e político Eusébio de Queirós, entre outras personalidades ilustres.
Antes de explicar a finalidade dessa associação, é necessário esclarecer que a palavra “petalógica” vem de “peta”, que significa afirmação que não condiz com a verdade, algo semelhante ao termo fake news de hoje. Então, o grupo tinha como objetivo contestar as mentiras na política da época produzindo mais mentiras divulgadas por meio de um informativo impresso chamado “A Marmota Fluminense”.
Afinal, em um tempo em que não havia internet com seus algoritmos nem os meios de comunicação que temos hoje, com suas parafernálias tecnológicas, quem podia produzir um periódico impresso detinha uma enorme vantagem frente às disseminações de informações feitas boca a boca, transmissão oral esta que foi chamada de “rádio cipó” em uma época passada mais recente.
Havia jornais da época que praticavam a mentira abertamente, igual às fake news de hoje, por isso a Sociedade Petalógica decidiu que o remédio para as mentiras produzidas para manter os políticos e seus privilégios era elaborar mais mentiras, só que não uma mentira qualquer.
Tratava-se de uma mentira exclusivamente de cunho político que funcionava como ironia, visando despertar a sociedade e mostrar que havia algo de errado, a ponto de somente os mais críticos e atentos percebiam que as informações eram falsas. Era tão capcioso que vários jornais replicaram essas “petas” como se fossem notícias verdadeiras.
É importante entender o contexto da época, pois a Constituição de 1824 havia abolido a censura prévia no Brasil e deixou muitos à vontade na imprensa do Século 19 para emitir opinião, o que muitas vezes podia descambar para calúnias e difamações, por isso os juristas da época tiveram o cuidado de regulamentar essa liberdade inserindo punições para tipógrafos e autores que se excedessem em suas publicações.
Séculos se passaram e a “fábrica de mentiras” dos intelectuais de outrora em hipótese alguma pode ser confundida com as “fábricas de fake news” da atualidade, que se valem da internet para tornar a mentira como verdade, visando interesses escusos na política, como está ocorrendo neste momento, no Brasil.
As mentiras da Sociedade Petalógica tinham a missão de promover uma crítica à política e à sociedade da época, enquanto as mentiras de hoje visam manipular as pessoas por meio de uma engenhosa lavagem cerebral, que se vale da religião e do nacionalismo exacerbado.
A partir daí, foi criada uma imensa bolha aos mesmos moldes do que foi visto nas eleições presidenciais nos Estados Unidos, quando manifestante invadiram o Capitólio. No Brasil, essa manifestação veio sendo intensamente trabalhada desde o início do governo, desacreditando o processo eleitoral e a Justiça brasileira.
Alimentadas por fake news, essas pessoas foram envolvidas numa grande rede conspiratória em que elas acreditam piamente numa paranoia que as fazem não mais crer em nada além do que sai dessa fábrica de mentiras. Na cabeça delas, só existe uma “verdade”, que é aquela trabalhada nas fakes news. Vídeos que mostram manifestantes comemorando notícias falsas são vexatórios. Mas nem isso os traz à realidade.
Até mesmo as mensagens curtas e ambíguas do seu líder, o presidente Bolsonaro, considerado um mito, contribuem para isso. Sem admitir a derrota, ele pede para que os manifestantes desobstruam as estradas, mas o discurso vago os faz enxergar uma mensagem subliminar de que estaria sendo tramada uma confirmação de fraude eleitoral e uma intervenção militar.
Estamos diante de uma alucinação quase coletiva, cujo transe só será superado quando começar a ocorrer o que foi feito pela Justiça dos Estados Unidos no caso do Capitólio: a punição exemplar. Não há outra saída para frear essa sociedade patológica.
*Colunista