Opinião

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KinoMakunaima: a estética amazônica de fronteira e a luta de imagens no filme Rabiola (RR)

Éder Rodrigues dos Santos

A potência estética amazônica que tem o curta metragem Rabiola (ficção, 2021, RR), dirigido por Thiago Bríglia, vai além do debate da luta de classes na tríplice fronteira norte, uma das marcas impressas na trama do curta desde os minutos iniciais. Trata-se de uma luta de imagens. A imagem da miscigenação da resistência que tem nos atores mirins o fenótipo do afro-ameríndio.

O cinema, com sua dimensão hiperfísica tem a capacidade de registrar o espaço-tempo e, permite ao espectador, compreender o momento contemporâneo em que ele ocorre, com ou sem manipulações tecnológicas, pois a exibição é fenômeno do tempo onde os fatos do filme se mostram presentes a quem assiste. Ambientado no Parque Anauá, mais especificamente, no Lago dos Americanos, o curta tem 14 minutos e de cara traz os dois atores mirins, Abrahan Melendez (Jeferson) e Bianca Gonzalo (Yosiris), os protagonistas.

O roteiro assinado por Thiago Bríglia e Elder Torres, tem levado aos grandes festivais de cinema, os cineclubes, os espaços populares, as salas alternativas de exibição e a sala de aula, uma frenética luta de imagens, evidente e cotidiana, pois a fronteira do Brasil e Venezuela é, por repetidas vezes, retratada em outros meios com preconceito e discriminação típico de uma mídia dominada pelas elites do atraso. Ao contrário, o filme traz a positividade do ser venezuelano-caboclo que enfrenta a vida e o opressor com a perspicácia do afro-ameríndio.

A migração venezuelana ocorrida em virtude da crise econômica e política, provocada pelos constantes embargos dos EUA e pela falta de comando interno do país, foi acelerada em 2016, obrigando os habitantes daquele país caribenho, a buscarem refúgio em países vizinhos, como a Colômbia e o Brasil. O fato migratório com suas nuances de língua, estranhamento cultural e adaptação às novas realidades estão implícitos na película. Os personagens centrais são crianças e trabalhadores de feições afro-ameríndias, que contrastam com a branquitude do antagonista.

Bernardo, na brilhante interpretação de Caíque Cordeiro, é esse pequeno antagonista. Revela a expressão mirim do euro-hétero-macho-autoritário, conceito desenvolvido pelo antropólogo e idealista da Mostra Internacional do Cinema Negro de São Paulo, professor livre docente da USP, Dr. Celso Prudente, ao tratar do pensamento eurocaucasiano que é colonizador e vampirizador das classes menos privilegiadas e, que tenta, pela violência física e simbólica submeter historicamente o íbero-ásio-afro-ameríndio.

Na perspectiva cinematográfica, possivelmente, o curta roraimense nos oferece muitos conflitos. Destes, notadamente, três são mais evidentes. O pathos que permite observarmos o arco dramático até chegarmos em uma espécie de auge do conflito fílmico, se dá na briga (sonora e física) entre a menina venezuelana e o garoto de classe média na captura do brinquedo, a pipa, após a ‘trança’. No entanto, há um conflito de segunda ordem, familiar, que toma a atenção de Raúl, o cuidador do garoto Bernardo.

O conflito é expresso na vulnerabilidade dos pais venezuelanos que tentam sobreviver em um país de cultura diferente, de tradição opressora e violenta, que é o Brasil. Mais que cuidar do garoto, o coadjuvante precisa cobrar quem o deve para ajudar na sobrevivência. Gestos e olhares que exigiram direção sensível e competente para provocar as sensações percebidas e premiadas pela crítica. Os cuidadores e personagens: Raúl (Jesús Cova) e Izabel (Ixemar Camacho), são interpretados por quem conhece bem o que está posto no curta.

O terceiro conflito ocorre entre os competidores e seu espaço geográfico. Boa Vista é cidade plana, construída em região de savana, o lavrado amazônico. Assim, concentra grande número de lagos com águas superficiais na zona urbana, facilmente encontrados no período semestral chuvoso. Ali, no lago, a força e a determinação da pequena migrante Yosiris é testada, frente ao frágil pensamento do ideal de poder capitalista, efêmero que, com imposição econômica e falsa superioridade, imagina que pode comprar a tudo e a todos. As regras da brincadeira da pipa são evidentes: se um dos competidores é cortado durante a briga no ar, ainda pode ganhar ‘aparando’ a pipa no chão. Mas o chão aqui conta com um obstáculo: as águas, que é o símbolo da fluidez do movimento, estética da cultura cabocla. As normas da natureza e da determinação feminina impõe-se sobre o antagonista, frágil, mimado e dependente.

O trabalho de tons subversivos, profundamente técnico e inovador dos roteiristas e equipe, fenomenologicamente, permite ao observador atento, repudiar a altivez do preconceito odioso contra o migrante de raiz indígena, um telurismo de resistência tomado em sua concretude com a derrota simbólica na dimensão do sonho, das pipas que se encontram no ar, que revela um vencedor: o que mais resiste longe de casa, uma resistência para garantir a existência, a coletividade de uma linha fina que tece a rede da solidariedade.

Para finalizar, sem spoiler, Rabiola situa-se entre os filmes brasileiros que denotam a coragem de filmar com crianças estrangeiras, pessoas em conflito com suas realidades impostas, semelhantes aos filmes de guerras, que consagraram tantas obras nessa difícil possibilidade de adaptação do mundo infantil com a dor da distância de seu país no cinema. Um filme de esperança que recebe prêmios pela obra que se constitui instrumento de enfrentamento, sutil, mergulhado em uma vitoriosa e carismática solidariedade diaspórica, que nos lembra o germe do Cinema Novo, com atualizações híbridas, mais transfronteiriço, bilíngue e latino.

 Jornalista, cineasta, sociólogo, doutorando em Geografia pela UNIR, editor de publicações científicas da UFRR, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Cultura e Modos de Vidas Amazônicos (UNIR) e da Mostra Internacional do Cinema Negro (SP). E-mail: [email protected].

O dia em que matei Erasmo Carlos

31/10, segunda-feira. Acordo, e como faço sempre, vejo as notícias no celular.

Ainda na cama, uma notícia me chamou atenção: morre aos 81 anos, o cantor e compositor carioca Erasmo Carlos. Tinha a causa morte, o hospital onde estava internado, todas as informações necessárias, que pareciam verdadeiras. Mais do que depressa, no calor do acontecimento, compartilho a notícia com amigos nos grupos de WhatsApp.

Levanto, tomo café, ligo a TV e nada da divulgação da morte do Tremendão. Em seguida alguns amigos me questionam se era verdadeira a morte de Erasmo. Em seguida leio na internet uma nota com o desmentido de sua partida.

02 de novembro, Dia de Finados, o próprio Erasmo, posta uma fotografia sorridente, com o título “Mais vivo do que nunca”, mostrando sua saída do hospital, após nove dias hospitalizado. Entendi que o recado era para mim. O homem vivo e eu matando-o. “Menos mal”, pensei eu, me penitenciando pela azáfama.

Em minha defesa, tenho visto muitos jornais sérios divulgarem obituários de celebridades, que continuam vivas. Um exemplo clássico é Pelé, morto diversas vezes pela imprensa.

Erasmo faz parte da trilha sonora de minha vida. Ele compôs mais de 500 musicas, que marcaram época. Muitas marcaram épocas e amores diferentes.

Erasmo e Roberto musicaram a alma do Brasil, criaram a trilha sonora de várias gerações de brasileiros, encheram de beleza e emoção nossos dias.

A primeira grande paixão que tive, aos 16 anos, foi uma garota de nome Raimundinha, órfã, criada pelas freiras em Sobral, CE. Fui de férias para Sobral, por causa de uma tia que era madre superiora no Convento. Conheci a pequena Raimundinha, namoro escondido, nos apaixonamos. Vim para de volta para casa. Dessa época que me tornei missivista. Foram inúmeras cartas trocadas. Cartas de amor com tempero de saudade.

Apaixonados, a música “Sentado à beira do caminho”, era nossa trilha sonora.

Em 2015, no lounge da Latam, na área internacional aeroporto do Galeão, no Rio, por obra do acaso, tive o prazer de conhecer pessoalmente Erasmo Carlos. Aquele homem enorme, fala mansa, sentou-se próximo onde estava sentado. Passado algum tempo, por delicadeza, para puxar conversa, perguntou se eu fumava. “Não”, lhe respondi, ao que ele me disse: “Você é um cara feliz”.

22/11, quarta-feira, hora do almoço, vejo pelo noticiário a notícia da morte de Erasmo. Agora não era mais notícia falsa, e, sim a triste comunicação de sua partida. Morre Erasmo Carlos, 81 anos, de síndrome edemigênica e infecção pulmonar.

Erasmo Esteves nasceu no Rio, filho da inspetora escolar Maria Diva Esteves, que veio da grávida da Bahia e o criou sozinha (ele só conheceria o pai na idade adulta). Adolescente fã de rock, ele conheceu Roberto Carlos em 1958, ano em que nasci. Foi Roberto que o procurou atrás da letra de “Hound dog”, hit de Elvis Presley, que iria cantar na televisão. Desde então, Erasmo e Roberto foram (quase) inseparáveis.

Um ano antes, Roberto tinha fundado com Tim Maia (que entregava marmitas na casa de Erasmo – às vezes com alguns pastéis subtraídos), Arlênio Lívio e Wellington Oliveira o grupo The Sputniks, desfeito em pouco tempo por causa de uma briga entre Roberto e Tim. Eles, Erasmo e Jorge Benfaziam parte, então, da turma que se reunia no Bar Divino, na Rua do Matoso, na Tijuca, para trocar informações sobre rock – e arriscar algumas canções.

Ainda em 1964, Erasmo teve seu primeiro grande sucesso, “Festa de arromba”, escrita com Roberto Carlos – assim como “Quero que vá tudo pro inferno”, gravada por Roberto e que se tornou o hino da jovem guarda, o movimento que começou em 1965, quando eles estrearam, na TV Record de São Paulo, juntamente com Wanderléia, o programa dominical de mesmo nome – um sucesso avassalador desde a primeira edição. A Jovem Guarda, foi agosto de 1965 ao início de 1968.

Ao longo dos anos 1970, Erasmo se tornou uma referência para a jovem geração do rock brasileiro, seguiu compondo com Roberto (e foi por ele homenageado na canção Amigo”). Muitas das parcerias foram sucessos com o Rei (“Detalhes”, “Cavalgada”, “Além do horizonte”, “Café da manhã”), outras com o Tremendão (“Filho único”, “Minha superstar”, “Pega na mentira”, “Mesmo que seja eu”) e algumas ainda com outros intérpretes (como é o caso de “Lembranças”, gravada com sucesso pela cantora Katia).

A partir daí, Erasmo Carlos voltou a gravar discos de inéditas, como “Santa música” (2004), “Rock’n’roll” (2009) “Sexo” (2011), “Gigante gentil” (2014) e “Amor é isso” (2018), acompanhado por novos e velhos companheiros de estrada. Em 2009, lançou pela editora Objetiva o livro de memórias “Minha fama de mau”. E em 2019, viu estrear nos cinemas a cinebiografia “Minha fama de mau”, de Lui Farias, com Chay Suede, no papel principal, Gabriel Leone (como Roberto Carlos) e Malu Rodrigues (Wanderléa).

Uma curiosidade, o apelido “Tremendão” vem do nome da grife de produtos para a juventude (calças, coletes, chapéus etc) que Erasmo tinha nos anos 60.

Segue na luz, Erasmo Carlos, amigo, irmão, camarada. Para mim vc nunca morrerá, teu legado é eterno. Estrelas mudam de lugar.

Luiz Thadeu Nunes e Silva é engenheiro Agrônomo, Palestrante, cronista, escritor e viajante. Autor do livro “Das muletas fiz asas”. O latino-americano mais viajado do mundo com mobilidade reduzida, visitou 151 países em todos os continentes da terra.

É difícil acreditar

Afonso Rodrigues de Oliveira

“Se a pessoa não tiver fé em si, nunca terá fé em mais ninguém nem coisa alguma. A fé em si é um imperativo absoluto para que se possa ter uma vida feliz, harmoniosa e digna”. (Samuel Dodson)

O ser humano é ímpar. Não se iguala a nada. As vezes sorrio quando a Tatá olha pra mim, com o rabo do olho. E mesmo quando ela vê que estou prestando atenção ao seu olhar, ela continua olhando como se estivesse me chamando de tonto. Não sei o que ela está pensando ou vendo, naquele olhar de soslaio. Não pense nisso não. Tatá é uma cadelinha que temos aqui, no quintal. É pequenininha e chatinha pra dedéu. E o pior é que ela só olha assim, pra mim. É como se eu lhe devesse alguma coisa. Será que nos conhecemos em eras anteriores? Tudo é possível nesse mundo em evolução, onde vivemos sem saber se vivemos.

Vamos mudar o papo. Vamos cuidar mais da nossa tarefa sobre esta Terra, e cuidar dela com mais carinho e respeito. Carinho, não sei, mas respeito não temos nenhum. Ainda não prestamos atenção à importância que tem a educação para o nosso progresso. Ainda não aprendemos a ter fé em nós mesmos. Preferimos dedicar
o melhor de nossas vidas a quem e ao quê, que não estão nem aí para o nosso despreparo. Ainda não somos, capaz de ser. E isso porque ainda não sabemos quem nem o que somos. Ainda não acreditamos que toda força está no amor. Mas preferimos continuar confundindo amor com desejos. E nada é mais fútil do que essa confusão anacrônica.

Vamos nos amar, a nós mesmos, e viver a vida que deveríamos estar vivendo para o progresso do nosso futuro. Não nos esqueçamos de que tudo que colhemos no futuro é fruto da semente que plantamos hoje. Recentemente falamos do pensamento do Rui Barbosa: “Há os que plantam a alface para o prato de hoje, e os que plantam o carvalho para a sombra de amanhã”. E a semente mais produtiva é a educação. E ainda não conseguimos fazer com que o ser humano acredite nisso. Continuamos indo para as ruas espernear pelo que deveríamos conseguir com educação. Sem educação não há respeito. Sem respeito não há progresso na evolução humana. E estamos falando em evolução, não em revolução. A revolução fazemos dentro de nós mesmos com a evolução da nossa cultura, que não há sem educação.

Sei que fica chato, mas é necessário que repitamos para entendermos: “No Brasil só há um problema nacional: a educação do povo”. (Miguel Couto). No dia em que nossos administradores públicos entenderem isso, daremos um passo para a caminhada da cidadania. E pelo que vemos, ainda temos muito para caminhar rumo à democracia que tanto elogiamos e desrespeitamos. Pense nisso.

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