Tudo feito às claras na saúde indígena, sob a conivência da nação e com conluios locais
Jessé Souza*
Pela amplitude e importância do tema a respeito da saúde do povo Yanomami, é necessário ir mais além do que foi comentado no artigo de ontem, intitulado “Projeto de poder passou pelo destroçamento da saúde indígena e a legalização do garimpo”. Nada foi feito de maneira oculta. Tudo foi traçado com amplo conhecimento de todos, inclusive com repercussão na imprensa nacional.
Enquanto o governo Bolsonaro ignorava todas as denúncias e 21 documentos de pedido de socorro aos Yanomami, ao longo de dois anos (Fonte: The Intercept – 17.07.2022), o projeto de legalizar o garimpo e destruir a saúde indígena avançou de forma rápida. No dia 26 de outubro de 2021, Bolsonaro veio ao Estado de Roraima não para conferir a situação dos Yanomami, que naquela época já sofriam a invasão de suas terras por garimpeiros e começavam a morrer por desnutrição, doenças tratáveis e assassinatos em conflitos com garimpeiros.
Naquela data, o então presidente visitou a comunidade indígena Flechal, no Município de Uiramutã, a qual é favorável à exploração mineral e ao agronegócio, e sobrevoou uma área de garimpo ilegal na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Na visita, voltou a defender a legalização do garimpo, com a aprovação do Projeto de Lei 191/20, que abre as terras indígenas para a mineração e a exploração de recursos hídricos e orgânicos (Fonte: Folha de S. Paulo – 28/10/2021).
Também defendeu a instalação de uma hidrelétrica no vale do rio Cotingo, uma antiga proposta surgida no início da década de 1990 não necessariamente como alternativa para uma matriz energética, mas para garantir a instalação de grandes mineradoras na região, assim como foi o principal motivo da construção da Hidrelétrica de Jatapu, no Sul de Roraima, o qual consumiu uma montanha de recursos naquela mesma década e hoje mal consegue manter aquela abastecida aquela região.
Antes disso, já em abril de 2021, Bolsonaro havia nomeado militares e indicados políticos para ocuparem estrategicamente a Funai e a saúde indígena, o que agravou severamente a crise sanitária enquanto o garimpo ilegal se fortalecia nas terra indígenas Yanomami e Raposa Serra do Sol, inclusive com apoio explícito dos políticos locais – um senador que era líder do governo teve uma aeronave apreendida pela Polícia Federal em uma área de garimpo.
A sanha foi tanta que o Governo de Roraima entrou na ofensiva em favor do garimpo ao apresentar um projeto de lei legalizando a exploração mineral no entorno de terras indígenas e áreas ambientais. Os deputados não só aprovaram o projeto, como acrescentaram a liberação do uso do mercúrio. A “lei do garimpo” foi sancionada, mas logo depois derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (Fonte: O Eco 21.02.2021).
Enquanto isso, os militares e os indicados políticos destroçavam a saúde indígena, intimidando lideranças indígenas que faziam denúncias, desviavam verbas destinados ao combate à pandemia e, sob as ordens do general Eduardo Pazuello, então ministro interino da Justiça, foi iniciado o grande esquema de distribuição de cloroquina para as populações indígenas, um medicamento comprovadamente sem eficácia para combater o vírus da Covid.
Com Pazuello (o qual foi secretário da Fazenda em Roraima durante a intervenção federal em dezembro de 2018, quando o governador Antonio Denarium assumiu como interventor), houve um aparelhamento político dos Distritos Especiais de Saúde Indígena (Dsei) da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), paralelamente ao maior corte orçamentário para a saúde indígena dentro de oito anos, mesmo diante da maior pandemia do século (Fonte: Repórter Brasil – 15/04/2021).
Ainda que apontado como o responsável pela desastrosa condução da saúde indígena e do país durante a pandemia, ao deixar o ministério sob investigação da PF, o general Pazuello foi condecorado em Roraima, mais precisamente pela Câmara Municipal de Boa Vista, no final do ano passado. Um vereador ligado a famílias de produtores foi o autor da proposta que concedeu ao general o título de Cidadão Boa-Vistense e a Medalha de Honra ao Mérito Rio Branco, a mais alta honraria do Município.
Para atestar que tudo isso fez parte de um grande projeto, a Secretaria Estadual do Índio (SEI) do Governo de Roraima foi comandada até o início deste ano por um representante de produtores rurais, ligado a lideranças do Município do Amajari. O governo estadual esvaziou a SEI, em vez de nomear um indígena para o comando, enquanto o principal discurso do governador, no início do ano, foi o anúncio de que tentará novamente aprovar um projeto de legalização do garimpo em áreas fora de terras indígenas.
Portanto, nada foi por acaso ou às ocultas, e sim um projeto deliberado do governo Bolsonaro, em sintonia com o governo local, que resultou na tragédia vivida hoje pelo povo Yanomami.
*Colunista