O jogo duplo e a necessidade de se montar uma rigorosa fiscalização nos voos contratados
Jessé Souza*
Há pelo menos dois anos, esta Coluna vem apontando as principais falhas na legislação que permitem “esquentar” a comercialização do ouro ilegal, dando lastro ao garimpo ilegal em terras indígenas, algo que vem sendo revisto pelo atual governo. Outro fato que sempre ganhou destaque, neste espaço, é a necessidade de se enfrentar a máfia dos voos de táxis aéreos contratados para dar apoio à saúde indígena, mas que faziam jogo duplo ao servirem ao garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami.
No dia 16 de janeiro passado, o artigo intitulado “O grande desafio da política indigenista que passa pelo comando da Sesai” comentou que o grande desafio do atual governo para enfrentar o garimpo ilegal também passaria pela retomada da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), a qual sempre esteve nas mãos dos poderosos locais, os quais historicamente indicaram os titulares dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei).
Conforme foi frisado, o primeiro passo seria reunir condições para se livrar definitivamente das empresas de táxi aéreo já investigadas pela Polícia Federal por envolvimento no garimpo ilegal. Inclusive, foi questionado se os novos dirigentes da saúde indígena iriam ficar refém do esquema, uma vez que a disputa por voos aéreos, em outros tempos, já foi disputado à bala, quando houve um crime de pistolagem, que foi o caso Chico da Meta, em 2011.
No entanto, os fatos indicam que a política indigenista do governo vai seguir refém da forte estrutura montada pelas empresas de táxi aéreo que prestam serviço nas terras indígenas, setor este que elegeu uma deputada federal e que teve um empresário de garimpo que esbanjou muito dinheiro como candidato a deputado federal, que não se elegeu, mas conseguiu muitos votos, mesmo sendo estreante na política partidária, embora já operasse com voos para saúde e garimpos, conforme investigações da PF.
O que indica que tais empresas continuarão no comando foi a recente decisão da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que contratou emergencialmente (portanto sem licitação) a empresa Voare Táxi Aéreo Ltda, pelo valor R$ 17,7 milhões, com a finalidade de fornecer voos dentro das ações emergenciais na saúde na Terra Indígena Yanomami e no combate ao garimpo ilegal. O contrato é por um ano. A empresa tem como sócia uma deputada federal eleita no ano passado.
Conforme os registros, tal empresa vem sendo contratada pelo Governo Federal desde 2010, mas seu histórico é mais antigo, inclusive com participação de investigados por garimpo ilegal pela PF, os quais estavam ligados a outras empresas de transporte aéreo que prestavam serviço aos DSEIs. Com o nome inicial de Paramazônia Táxi Aéreo, mudou de nome e de sócios em 2018, passando a se chamar Voare Táxi Aéreo, conforme aprovado pela Agência Nacional de Aviação (Anac).
Notícias da imprensa da época indicam que a Voare havia recebido R$ 197 milhões do Ministério da Saúde no período de 2014 até 2 de julho de 2020 com contratos para transportar indígenas e profissionais de saúde não só ao povo Yanomami, mas também à Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Isso fora recursos de outros órgãos federais, a exemplo do Exército e a própria Funai, o que indicam um volume milionário de recursos movimentados pela empresa. No ano passado, a Voare recebeu R$41,2 milhões do governo, enquanto crianças Yanomami estavam morrendo.
As seguidas operações da PF indicam que desde 2018 empresas contratadas para atender a saúde indígena faziam jogo duplo na Terra Yanomami, inclusive uma delas estava proibida de operar voos por decisão da Anac. Desde lá, os órgãos de atendimento e apoio aos indígenas já vinham reféns das mesmas empresas, cujos contratos eram sem licitação não apenas para voos em terras indígenas de Roraima, mas também do Alto Rio Negro (fronteira com a Colômbia e Venezuela, no Amazonas) e Vale do Javari (fronteira entre Amazonas e Peru), Alto Purus e Alto Rio Juruá (ambos no Acre).
Os fatos indicam que será necessário manter uma rigorosa fiscalização sobre tais voos contratados das mesmas empresas do passado, já que não há como se livrar delas, as quais passaram a ser alvos de investigação da PF. Ou se fiscaliza com todo o rigor necessário, ou há um sério risco de tudo voltar ao quer era, conforme foi visto nos últimos quatro anos.
*Colunista