Jessé Souza

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Da fila da buchada e do galeto para uma preocupante ação que desenterra o passado

Jessé Souza*

O governador Antonio Denarium (PP) decidiu ressuscitar, em seu segundo governo, os velhos tempos de assistencialismo e paternalismo ao colocar centenas ou milhares de pessoas na fila para receber, de suas próprias mãos, ao lado da primeira-dama, doação de peixe como brinde da Semana Santa. Tais práticas como política de governo foram implantadas em Roraima no início da década de 1980 pelo então governador, o brigadeiro Ottomar Pinto, ainda no tempo de Território Federal.  

As quilométricas filas de doação de alimentos, brinquedos e até roupas seguiram até a década de 1990, quando o velho brigadeiro voltou como primeiro governador eleito, a partir da criação do Estado. Ottomar colocava milhares de pessoas o dia todo na fila, sob o sol escaldante, no entorno do Palácio do Governo, para doar buchada, peixe e frango (aqui chamado de galeto). Muitos desses produtos chegavam a estragar devido às condições de armazenamento.

No Natal, era a vez das crianças sofrerem para receber brinquedos no Estádio Canarinho. Em datas comemorativas, pais, mães e avós se enfileiravam nos ginásios de esporte para receber redes, bermudas e vestidos. O governador era o “pai dos pobres”, indo pessoalmente fazer as entregas, ao lado da primeira-dama. E o governo era tido como o mantenedor de tudo. A fila da humilhação era vista pelo povo como uma ação social do governo aos pobres.

Tempos difíceis, de pobreza e forte migração nordestina, cujas famílias eram mandadas para desbravar colônias agrícolas no interior. Toda uma população foi acostumada a virar pedinte, de crianças a idosos, cuja expressão máxima desse comportamento foi a fila no banco NSAP, no início da década de 2000, quando os políticos instituíram a “política dos gafanhotos”, que nada mais era do que empregar pessoas em algum cargo do governo só para receber, sem precisar trabalhar.

Os políticos alimentaram o assistencialismo e o paternalismo até não suportarem mais, pois eles não conseguiam dar expediente em seu gabinete ou descansar em casa sem ter uma corriola de pedintes batendo à porta, exigindo uma botija de gás, dinheiro para pagar água e luz, ou mesmo uma passagem de avião. E assim a população roraimense chegou até aqui, nos dias atuais, dividida entre a velha geração da “fila da buchada” e o da nova geração, que busca no trabalho e nos estudos o seu futuro.

Então, eis que surge Denarium resgatando tempos que precisam ser superados na vida política de Roraima. Pessoas pobres, visivelmente sofridas, tiveram que se submeter a enfrentar filas e tirar fotos recebendo peixe das mãos do governador ao lado da primeira-dama, entre elas mulheres idosas, com rostos sofridos, tendo que sorrir acanhadas, sem dentes, para acompanhar o sorriso de políticos para a foto espalhada nas redes sociais e grupos de mensagens do Whats.

Por estranha coincidência, vivemos uma nova onda migratória em massa, desta vez de venezuelanos, que se juntam a muitos roraimenses que vivem à margem das políticas de governo centradas apenas nos grandes, como o agronegócio que não gera os empregos necessários. Não que o governo deixe de praticar ações sociais aos pobres. Absolutamente não. Mas é possível fazer essas doações sem fila, sem sofrimento e muito menos sem constrangimento em frente das câmeras.

Além disso, não se sabe quais os critérios para ter recebido uma pulseira para pegar o peixe das mãos do governador. Pois, do lado de fora, centenas de pessoas se aglomeravam, gritando para que o portão fosse aberto para todos. Não houve qualquer divulgação desse cadastramento, inclusive surgiram denúncias de que pessoas eram abordadas aleatoriamente em locais públicos para receber a pulseira do peixe.

Não queremos acreditar no retorno de uma Era em que as pessoas foram acostumadas com a humilhação da fila do peixe e do galeto da Codesaima como uma política de governo. O assistencialismo e o paternalismo desgraçaram toda uma geração, abrindo caminho para o conformismo e para a concordância com os maiores esquemas de corrupção que destroçaram o Estado de Roraima.

Precisamos enterrar esse passado de uma vez por todas, antes que os esqueletos do armário sejam retirados para se instalar um novo tempo de humilhação com o povo mais pobre, como política para engabelar o povo e desviar a atenção para a realidade de exclusão e pobreza, bem como passar um grosso verniz em cima dos casos de corrupção que pipocam nos dias atuais.     

*Colunista

** Os textos publicados nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião da FolhaBV