Festival de ilegalidades que sempre emperrou a regularização fundiária
Jessé Souza*
Não há outra instituição com mais informações sobre a questão fundiária do Estado de Roraima do que o Ministério Público Federal (MPF). Até o Ministério Público do Estado de Roraima (MPRR) andou investigando uma ou outra denúncia, a do rumoroso caso da piscina em “J”, com repercussão nacional, de um então governador, sua esposa, familiares e diretores fundiários daquele governo, em 2014. No entanto, o MPF reúne as mais amplas informações há mais de uma década sobre uma criminosa rede de irregularidades fundiárias, inclusive do caso do ex-governador.
Foi em 12 de julho de 2012 que o MPF em Roraima ingressou com uma ação civil pública contra o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Iteraima), Instituto de Terras e Colonização de Roraima (Iteraima) e Estado de Roraima por irregularidades na transferência de terras da União ao Estado. A investigação havia iniciado em 2010, portanto há quase 13 anos, quando os procuradores solicitaram documentos sobre a doação de glebas da União ao Estado. E a conta chegou agora.
A pedido do MPF, o Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF-01) tornou irregulares as emissões de títulos definitivos pelo Instituto de Terras de Roraima (Iteraima) de todos os imóveis situados na faixa de fronteira. Obviamente que se trata de uma grave questão que causa insegurança não só a proprietários de imóveis, como também afugenta grandes investidores que por ventura queiram vir para Roraima (se bem que faz um certo tempo que eles conhecem tal realidade, por isso já haviam desaparecido).
Desde a década passada, o Iteraima vinha agindo de forma suspeitíssima, com denúncias ficando abafadas, inclusive de sumiço de processo de titulação lá de dentro para que uma área fosse entregue a grupos de supostos assentados em período eleitoral (fato relatado em outro artigo no ano passado). Até que, depois de dois anos de investigação, o MPF identificou irregularidades nos termos de transferência de terras, os quais eram feitos sem o procedimento básico de georreferenciamento.
Naquela época, foi constatada a sobreposição de 50 propriedades tituladas pelo Iteraima em terras da União e ao menos dois títulos sobrepostos às áreas de proteção ambiental. O MPF identificou que imóveis rurais titulados pelo Iteraima a particulares não haviam sido certificados pelo Incra, sendo apontada a inexistência de certificação de mais de mil imóveis titulados só naquela época.
Embora não fosse objeto dessa investigação específica, houve até casos de fazendas dentro da Terra Indígena Yanomami. Então sempre houve um festival de irregularidades fundiárias que beneficiaram do governador da época a outras autoridades dos três poderes constituídos. Surgiu até o caso da esposa de um então conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE) com terra titulada em áreas sobrepostas à Floresta Nacional de Roraima.
Existe ainda o caso da Gleba Tepequém, em que o Iteraima ignorou qualquer processo de transferência e registrou as terras da Serra do Tepequém por conta própria, sem o conhecimento do Incra. Não por acaso, nessas terras houve também uma corrida de ocupação e especulação imobiliária pelas autoridades da época (o tema foi motivo de outro artigo no ano passado). Esse foi apenas um pequeno resumo do que, de fato, emperra a regularização fundiária.
Logo, a recente decisão da Justiça Federal pode até ser derrubada em instância superior, mas os fatos indicam um verdadeiro esbulho de terras públicas para beneficiar as castas políticas e empresariais do agronegócio locais, que não mediram esforços nem pudores para se apropriarem ilegalmente de Roraima. O mais correto seria mesmo anular todas as titulações dos últimos 15 anos em um verdadeiro pente-fino. Mas quem terá peito para uma empreitada de tal magnitude?
Agora, com a palavra, a Justiça…
*Colunista