Cotidiano

RR registra 159 infanticídios em 4 anos

Prática de matar recém-nascidos é cultural entre índios da etnia Yanomami, mas projeto de lei prevê a criminalização

O infanticídio indígena, assassinato de bebês que nascem com problemas graves de saúde, continua sendo tratado como tradição cultural entre os índios da etnia Yanomami, em Roraima. Nos últimos quatro anos, de acordo com o Mapa da Violência e o Ministério da Saúde (MS), foram registradas 159 mortes de recém-nascidos em comunidades indígenas do Estado.

Somente entre 2012 e 2013, nas aldeias Yanomami dos municípios de Alto Alegre e Caracaraí, considerada a cidade mais violenta do Brasil, o Mapa da Violência registrou 101 assassinatos de crianças indígenas. Em 2014, conforme o Ministério da Saúde, foram 33 mortes e, em 2015, mais 25. A causa básica apontada pelas mortes: agressão por meios desconhecidos.

Nas aldeias, a decisão sobre a vida do bebê parte da mãe. Após o parto, as mulheres vão sozinhas para a floresta e, se constatarem algum tipo de deficiência na criança, voltam sozinhas para a comunidade.  A prática ocorre em pelo menos 13 etnias indígenas no País, principalmente em tribos isoladas.

Na crença de algumas etnias, como a dos Yanomami, criança com deficiência física, gêmeos, filho de mãe solteira ou fruto de adultério podem ser vistos como amaldiçoados, dependendo da tribo, e acabam sendo envenenados, enterrados ou abandonados na selva.

Apesar dos números alarmantes, a prática é vista como parte da tradição entre os índios. “Para nós, a questão do infanticídio é cultural, cada povo indígena tem sua cultura. Na cidade também acontece infanticídio com a questão do aborto. As mulheres tomam remédios para matar as crianças”, disse o diretor da Hutukara Associação Yanomami (HAY), Darío Vitorio, filho do xamã e líder indígena Davi Kopenawa.

“Quando a comunidade e a família não querem a criança, tratam isso como parte da cultura. Na lei dos brancos é crime e a mulher pode ser presa, mas na lei dos índios é uma decisão da família, do casal”, complementou. Segundo ele, a tradição do infanticídio na etnia vem de séculos. “Há muitos anos isso é uma realidade entre os nossos ancestrais, que não criaram uma regra, mas sim uma cultura. Quando a criança possui alguma deficiência, ela passa por uma avaliação e aí entra o infanticídio. Para a sociedade não indígena é crime. Mas, para nós, não é”, afirmou.

Apesar de polêmica, a Constituição assegura a grupos indígenas o direito à prática do infanticídio. A realidade, porém, deve mudar. O Projeto de Lei 1057/07, apelidado de Lei Muwaji, que trata de medidas para combater práticas tradicionais nocivas em sociedades indígenas, como o infanticídio, foi aprovado pela Câmara dos Deputados, em agosto do ano passado, após passar anos engavetado.

De acordo com a proposta, que agora aguarda aprovação no Congresso, os órgãos responsáveis pela política indigenista, como a Fundação Nacional do Índio (Funai), deverão usar de todos os meios para proteger crianças, adolescentes, mulheres, pessoas com deficiência e idosos indígenas de práticas que atentem contra a vida, a saúde e a integridade físico-psíquica.

Segundo sociólogo, prática é mais comum entre não índios

O sociólogo e professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR) Linoberg Almeida defendeu que é preciso haver bom senso para entender a prática do infanticídio. “Criminalizar pode afetar a cultura de um povo sim, desde que o legislador e nossa sociedade não tenham capacidade de entender contextos, linguagens, hábitos, crenças e costumes daquele povo”, disse.

Para ele, o infanticídio é mais comum entre não índios do que entre índios. “Antropólogos, sociólogos, sociedade, poder público podem e devem gerar elementos para acompanhar, ajustar discursos e demandas. Mas infantícidio é mais comum entre os não índios que entre indígenas no Brasil. Igrejas fazem pressão sobre o assunto. Além disso, ele estimula a divisão de elementos do a favor e do contra. É polêmico”, frisou.

Conforme ele, falta debate para entender melhor os povos que compõem a sociedade roraimense, amazônica e brasileira. Quem está por trás do projeto de lei? Será que a  crença religiosa não está por trás de um projeto de lei proposto por um deputado de bancada evangélica? Que outros infanticídios ocorrem no Brasil para que tenhamos tanta ânsia de tratar desse com os Yanomami?”, questionou.

Funai diz que faltam dados concretos sobre a prática

Em nota, a Fundação Nacional do Índio (Funai) esclareceu que antes de formular alguma proposta, como o PL nº 1057/2007, compreende que qualquer medida administrativa ou projeto de lei que cause impacto ou vise regular e legislar sobre questões indígenas deve ser feito com a ampla e plena participação dos povos.

“A Funai defende o diálogo com os povos indígenas e tem atuado nesse sentido, trabalhando o tema internamente. Em 2010, a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), composta por representantes governamentais e indígenas, discutiu a proposta do PL e deliberou pela rejeição total do mesmo”, disse.

De acordo com o órgão, faltou diálogo do Legislativo com os povos indígenas de forma ampla e participativa, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “O projeto de lei desconsidera a falta de dados concretos sobre essa suposta prática de “infanticídio”, uma vez que não existem dados sistemáticos coletados com rigor e em número suficiente para afirmar que esta seja uma ação frequente e costumeira por parte de povos indígenas, como se tem alardeado. A alegação dessa suposta prática serve, muitas vezes, como tentativa de criminalização e demonstração de preconceito contra os povos indígenas, e também como justificativa para penalizar servidores públicos que atuam em áreas indígenas”, afirmou.

A Funai informou que, desde a Constituição de 1988, quando se instaurou um novo marco conceitual na relação do Estado com os povos indígenas, o modelo político pautado nas noções de tutela e de assistencialismo foi substituído por um modelo que afirma a pluralidade étnica como direito e estabelece relações protetoras e promotoras de direitos entre o Estado e as comunidades indígenas brasileiras.

“Para tanto, a atuação da Funai está orientada por diversos princípios, dentre os quais se destacam o reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas, buscando alcançar sua plena autonomia e autodeterminação, e contribuindo, assim, para a consolidação do Estado democrático e pluriétnico”, pontuou. (L.G.C)