Cotidiano

Mercado informal é alternativa para estrangeiros que moram em Boa Vista

Venezuelanos optam por investir em outros mercados e setores bem diferentes daqueles nos quais atuavam em seu país de origem

Entrar no mercado de trabalho já é uma tarefa naturalmente difícil, e pode ser ainda mais complicada quando os candidatos às vagas de emprego são estrangeiros. Para os venezuelanos que chegaram ao Brasil por conta da crise econômica enfrentada pela Venezuela, foi necessário se adequar e enxergar, nas dificuldades, uma oportunidade para investir em uma área com potencial.

É o caso da professora de música Solanyer Cruz Pirela, de 35 anos. A venezuelana costumava dar aulas de piano em Maracaibo e conheceu o marido, Kelyson Nascimento, quando se apresentou em um show de louvor na sua igreja. Na época, os dois começaram um relacionamento à distância e, pouco tempo depois, a pianista veio ao Brasil para oficializar a união. No entanto, por conta do idioma, a professora encontrou dificuldades para lecionar.

“O meu marido fala em espanhol, então, foi assim que a gente conseguiu se comunicar na época do namoro. Mas, quando cheguei aqui, no Brasil, falei que eu estava tendo muita dificuldade e a gente estabeleceu a regra de só falar português em casa. Isso me ajudou. Isso e ler muitos livros. Mas, no início, quando eu fui atrás de um emprego, fui rejeitada porque eu não falava bem português, então, decidi trabalhar por conta”, explicou Solanyer.

Agora, a professora trabalha no setor de alimentação, com a produção de iogurtes e bolos personalizados por encomenda produzidos na sua própria casa, no bairro Tancredo Nevez, zona Oeste da Capital. “Nós estávamos passando por um período de dificuldade porque o trabalho do meu marido não estava rendendo muito, aí eu comecei com o iogurte. Minha família sempre fez iogurte, bolo, essas coisas, então, eu falei para ele para a gente tentar fazer e foi um sucesso”, explicou Solanyer. “Com o bolo, não precisava falar português, só cozinhar”.

Com o nascimento do filho Gabriel, agora com pouco mais de 01 ano, a venezuelana aproveitou para investir em outra área. “O negócio dos bolos começou com o aniversário do meu filho. Eu fiz, todo mundo gostou e me aconselharam a continuar. Era um bolo simples, não tinha muita prática com decoração, então, eu fiz um curso e comecei com os bolos personalizados”, disse. “Bolo tem uma coisa que você faz para um aniversário, os convidados gostam e pedem contato. Então, eu comecei a ter mais conhecidos e até agora tem dado certo”.

A boleira agora tem orgulho da sua profissão e acredita que o fato de ter encontrado dificuldades a fez ultrapassar barreiras e crescer tanto profissionalmente quanto pessoalmente. “O Brasil tem me dado muitas oportunidades de crescimento pessoal, por fazer outra coisa, por arriscar em algo que eu não fazia lá profissionalmente, porque já tinha um trabalho formal. Por conta das dificuldades aqui, tive que enfrentar a vida.

Isso me fez crescer como pessoa e me fez aprender. Bolo tem uma coisa: que se eu quiser sair do Brasil, eu posso continuar trabalhando em qualquer lugar do mundo. A música também é uma linguagem universal. Porém, se eu fosse advogada, não era ninguém aqui. Isso me faz feliz”.

Com o recurso da venda dos bolos, a professora tem conseguido enviar dinheiro para a família que ainda mora na Venezuela. “Envio muito pouco porque a gente ainda não tem muitas condições, não estamos muito folgados, mas graças a Deus minha família não está tão mal quanto às outras pessoas, porque todos eles ainda trabalham. Eles não chegam a ter um nível alto de renda, porque ninguém tem lá agora. Mas eles conseguem comer, conseguem sobreviver, então, com o pouco que eu mando, já ajuda, mas não é muito”, frisou Solanyer.

Acreditamos em um sonho, mas não abandonamos a Venezuela, diz jovem

Para o jovem Miguel Ángel Araujo Ávila, de 22 anos, a crise também pode ser considerada uma chance de crescer. Vindo de Trujillo, o estudante de Jornalismo chegou em julho do ano passado ao Brasil e, após um período vendendo arepas e brigadeiros nos semáforos e praças da cidade, abriu um espaço para venda de sanduíches junto com amigos e com ajuda de pessoas que conheceu aqui no Brasil.

Agora, o estudante conseguiu arranjar um emprego na mesma área que atuava na Venezuela, em uma empresa do ramo de alimentação saudável e pretende continuar no ramo da alimentação para juntar recursos para ele próprio e para encaminhar para os familiares. “Quando inauguramos o ‘Cantinho da Venezuela’, a gente fez um investimento. Nada era nosso, tudo foi emprestado. Um vizinho emprestou uma colher, outro um garfo, outro um fogão, outro uma geladeira e foi assim. Trabalhávamos com isso, mas como depois nós conseguimos outras maneiras de gerar dinheiro, decidimos fechar, por enquanto, mas queremos retomar o espaço”, informou.

“A princípio, era uma missão impossível nos manter aqui, mas agora, graças ao trabalho dia a dia, a continuidade, a disciplina, conseguimos economizar e mandar dinheiro para a nossa família”, disse Miguel. Ele reforçou a ideia de que foi necessário se adaptar e se adequar às crises para sobreviver. “Crise revela dons e oportunidades, potenciais latentes, tesouros dentro de nós. A crise não derrota valentes, ela os revela”, declarou o jovem.

“Eu acredito que nós, venezuelanos, somos inteligentes, porque inteligência é se adaptar e nós estamos nos adaptando a qualquer circunstância. Eu nunca na minha vida comi farinha e agora eu amo caldeirada com farinha. Nós tivemos que nos adaptar. A transformação dói, é dolorosa, mas sabemos que daqui a alguns anos vai valer à pena”.

Por fim, o venezuelano agradeceu as oportunidades que recebeu no Brasil e afirmou que a intenção é de voltar para sua terra natal, assim que possível. “Sei que têm muitas pessoas ruins nas ruas, mas não são só os venezuelanos, o mundo todo é assim. Nós estamos muito gratos pela ajuda que temos aqui. O nosso país não tem condições de prestar auxílio para nós e, vocês, que não têm obrigação nenhuma, estão fazendo. Apesar da crise do Brasil, vocês ainda estão dando ajuda aos venezuelanos. Nós acreditamos em um sonho, por isso nós viemos para cá, mas não deixamos a Venezuela, não abandonamos a Venezuela. Tenho a intenção de voltar, mas, para isso, é preciso me estabelecer financeiramente”, frisou. (P.C.)