Cotidiano

Bebês continuam morrendo na maternidade pública do Estado

Pacientes relatam negligência dos profissionais, sujeiras e sofrimento na hora de dar luz na maternidade estadual

A situação caótica do Hospital Materno Infantil Nossa Senhora de Nazareth foi mais uma vez alvo de denúncias. Na semana passada, a Folha relatou a denúncia de duas mães que perderam seus filhos durante o trabalho de indução do parto, além de um terceiro bebê que foi para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Desta vez, três mulheres que estão internadas na unidade relataram para a Folha as situações vividas e presenciadas por elas durante os dias 13, 14 e 15 deste mês.  Em três dias foram três mortes durante o processo de parto. Mas há relatos de que pelo menos foram sete mortes desde sábado.
“Sem contar a situação estrutural e de abastecimento, é algo sem explicação”, disse uma grávida de 7 meses que está internada com infecção urinária na unidade desde sábado, 13, e que pediu para não ser identificada. Uma delas, grávida de 9 meses, deu entrada na madrugada de domingo sentindo contrações. Ela informou aos médicos que a atenderam que já tinha um filho e não poderia ter parto normal por problemas de saúde.
“Mas a médica que me disse que eu teria normal e que eu não tinha escolha”, destacou. Ela contou que os médicos a examinaram e ouviram os batimentos cardíacos do bebê. “Eles ouviram os batimentos e falaram que era para eu andar para incentivar o parto normal, mas não fizeram a ultra-som. Cada vez mais as dores foram aumentando e eu sabia que aquilo não era normal, mas ninguém nos atendia”.
Oito horas depois, quando ela não aguentava mais as dores, chamou mais uma vez os médicos, quando eles perceberam que estava sangrando e foi realizada uma cesariana de emergência. “Depois os médicos nos falaram que tinha passado da hora e que o útero dela tinha sofrido uma hemorragia, matando o bebê que não tinha como sair”, relatou a irmã da paciente. “Na cirurgia, os médicos tiveram que retirar o útero da mãe. Nós ficamos em choque, porque foi avisado que ela não conseguiria sem a cirurgia por ter precedentes. Isso é inadmissível”, enfatizou.
Outro caso que aconteceu na segunda, 15, foi quando uma indígena, que também não será identificada por ainda estar internada na unidade, teve o bebê na maca. A criança, que também passou do tempo para nascer, morreu.  “Todo mundo que estava no quarto viu. Ela gritava de dor e os médicos a deixaram numa maca por horas. A gente viu o bebê saindo, mas já estava morto”, relataram as denunciantes.
Uma mulher que presenciou o momento em que o bebê nasceu gravou um vídeo e o repassou para equipe de reportagem. No vídeo, a mãe, que está deitada coberta com um lençol, gemendo de dor, expõe o bebê que nasceu na maca, sem auxílio dos médicos. Logo após, vários médicos e enfermeiros aparecem para ajudá-la. “Agora tem médico e enfermeiro nessa maternidade, mas ela não precisa mais”, diz a pessoa que fez a filmagem.
Conforme os denunciantes, desde sábado mais de sete mortes de bebês foram presenciadas na maternidade. Os motivos foram os mais diversos e os mais espantosos, conforme falaram as denunciantes. “Na maior parte do tempo, nós vemos falta de atenção dos médicos, mas também há falta de medicamentos para se fazer cirurgias, sujeira na unidade e até para medicar mulheres grávidas que entram na unidade para tratar uma infecção, por exemplo”, explicaram.
Outra denunciante, que não se identificou por ainda estar internada, disse que aos 7 meses de gravidez teve infecção e não havia remédio algum para tratá-la. A família teve que comprar tudo e que  somente soro foi dado a ela. Ela citou também que vomitou ao lado da cama e que a sujeira ficou dois dias no chão porque não havia quem limpasse. “O banheiro estava tão imundo que eu mesma levantei, com soro na veia, e fui lavá-lo, porque precisava usar”, disse.
Durante a entrevista, todas as denunciantes fizeram questão de citar que as péssimas condições oferecidas para os médicos, enfermeiros e técnicos os deixam extremamente indispostos, e isso reflete nas “coisas mais absurdas que se pode imaginar no lugar onde a vida deveria ser preservada”, porém é totalmente desvalorizada e “muitas vezes as mortes de mulheres e crianças ocorrem por culpa desses profissionais que nem se importam mais”.
CARTÓRIOS – A Folha esteve nos dois cartórios da Capital e solicitou o registro dos óbitos no HMINSN durante os dias apresentados. No Cartório do 2º Ofício, localizado na Avenida Ateíde Teive, no bairro Liberdade, zona Oeste, foram encontradas três certidões de óbitos de bebês na barriga da mãe nos dias relatados. Quanto ao Tabelionato Deusdete Coelho do 1º Ofício, na Avenida Ville Roy, no Centro, foi informado pela direção que as informações serão identificadas e repassadas para Folha posteriormente.
Sesau nega 7 mortes na semana e diz que vai apurar denúncias
A Secretária Estadual de Saúde informou, por meio de nota, que a direção do Hospital Materno-Infantil Nossa Senhora de Nazareth esclareceu que não procede a informação de sete mortes ocorridos em uma semana, dentro da maternidade, ligados a possível negligência médica.
“Todos os casos de óbito são avaliados pela Comissão Hospitalar de Óbito. São encaminhados relatórios ao Comitê Estadual de Mortalidade da Secretaria Estadual de Saúde (Sesau). Independente disso, não se descarta a possibilidade de abertura de sindicância médica, para apuração do atendimento oferecido aos pacientes”, diz a nota.
A direção esclareceu que, em relação à indígena que teve o bebê na maca, é preciso saber a identificação da paciente para apurar a denúncia. No entanto, afirmou que todas as pacientes indígenas receberiam, além do atendimento médico e social, acompanhamento da coordenação indígena.
Sobre a paciente que perdeu o bebê e o útero, a direção informou que ela apresentou uma emergência chamada “descolamento prematuro de placenta (DPP)”, que pode causar várias consequências, inclusive a morte da mãe. “No entanto, no momento em que foi identificada a situação, a paciente foi encaminhada diretamente ao Centro Cirúrgico. Como o atendimento foi realizado dentro do prazo oportuno, foi possível salvar a vida da mãe.
Além disso, a nota diz que o cartão da gestante apresentava ausência de consultas pré-natais (em que são preconizadas pelo menos seis e ela só apresenta dois), além de exame alterado de glicemia, indicando que ela chegou ao hospital sem o devido acompanhamento de pré-natal e com diabetes gestacional não tratada.
A Sesau salientou ainda que todos os dias, em todos os plantões, são realizadas cesarianas, no entanto, a cirurgia só é indicada após a avaliação obstétrica do quadro clínico e realização de exames, como determina o Ministério da Saúde, uma vez que o parto normal é aquele com menos chances de complicações para  a mãe e o bebê, além de estar relacionado à menor taxa de mortalidade materna e fetal.
CRM pede informações
A Folha entrou em contato com o Conselho Regional de Medicina de Roraima (CRM-RR), que assistiu ao vídeo enviado pela equipe de reportagem. Em nota, a entidade lamentou o ocorrido e afirmou que pediu informações oficiais sobre os casos.
“É um reflexo do atual quadro da saúde brasileira, que sofre com superlotação, falta de leitos e de políticas específicas e mais eficazes para a saúde indígena”, afirmou.
A nota destacou que o CRM tem cumprido com o seu papel junto à sociedade e órgãos públicos. “Realizamos fiscalizações e cobramos melhorias na tentativa de mudar a situação degradante em que se encontra a saúde”, frisou. “O CRM-RR também já entrou em contato com a Maternidade, solicitando mais informações sobre o caso, para posteriormente tomar providências e encaminhou o caso para a comissão de fiscalização do órgão”. (JL)