Cotidiano

‘Caldeirão’ pode explodir de novo, diz OAB

Para a Comissão do Sistema Carcerário da OAB-RR, falta da aplicação de recursos federais e não aplicação de penas alternativas contribuem para superlotação de presídios, o que pode resultar em novas mortes

A morte de 33 detentos na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (Pamc), em janeiro deste ano, ganhou repercussão internacional e foi considerada uma das maiores tragédias do sistema prisional brasileiro. Agora, perto de completar um ano da chacina, a Folha relembra o caso e busca saber junto ao poder público e demais organizações o que mudou até agora e o que a população pode esperar para o próximo ano.

Para dar início à série de reportagens especiais, o presidente da Comissão de Acesso ao Sistema Carcerário da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Roraima (OAB-RR), Marco Pereira, fez uma breve retrospectiva do cenário em 2016, elencando os principais pontos que contribuíram para o ocorrido, como a falta de aplicação de recursos do Governo Federal, superlotação dos presídios, em especial, por detentos sem julgamento e ausência de penas alternativas.

Segundo o advogado criminalista, em 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou e determinou que fossem liberados valores do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), de R$ 44 milhões, para serem utilizados nas reformas das unidades prisionais e na construção de novos presídios. Porém, por conta da dificuldade de elaboração de projetos para aplicação de recursos, os valores foram bloqueados e só foram desbloqueados por conta de uma ação da OAB-RR em maio deste ano.

Agora, a informação é que os recursos Departamento Penitenciário Nacional (Depen) ainda não foram utilizados, apesar de o Governo do Estado informar que os processos licitatórios estão em andamento. “O cenário é que pouca coisa foi feita, até porque ocorreu esses atrasos. O que nós temos hoje de concreto é pouco, os presídios continuam lotados. Porém, não vejo com otimismo a criação somente de presídios. É necessário que seja feita uma reflexão entre a responsabilidade que o juiz tem de encaminhar uma pessoa para a penitenciária. Não está se falando em deixar a pessoa solta, não, mas analisar cada caso como um”, avaliou Pereira.

Penas alternativas beneficiam criminosos do alto escalão

Com relação à aplicação de penas alternativas pelo Poder Judiciário, Marco Pereira ressaltou que é preciso avaliar inicialmente a situação atípica de Roraima, que se encontra em uma tríplice fronteira, local marcado pela passagem do tráfico de drogas. “Nós sabemos que a maior quantidade de presos em Roraima é por tráfico de drogas, então, é necessário que dentro do Estado e no Brasil como um todo, sejam adotadas outras medidas cautelares, adversas à prisão. Cada dia que passa, se prende mais, mas se prende mal. O crime pega essas pessoas”, alertou.

Para o advogado, a sentença do Judiciário acaba ocorrendo para dar uma resposta mais rápida para a sociedade, que muitas das vezes anseia pela condenação. No entanto, a prática das penas alternativas já é muito utilizada no país, porém, por aqueles de alta renda e grande influência. “Nós temos acompanhado na operação Lava Jato, por exemplo, várias situações em que as pessoas praticaram crimes e logo depois adota-se outras medidas, como o monitoramento eletrônico, a prisão domiciliar. Isso já está ocorrendo, só que com determinadas pessoas que praticam crimes de lavagem de dinheiro, que também vem a afetar ao Estado”, analisou.

Penitenciárias viram escola do crime organizado

Outro problema que ocorre com a condenação, além da superlotação, é a chamada “universidade do crime”, onde uma pessoa que foi condenada por um delito de menor impacto acaba convivendo com diversas outras pessoas envolvidas em atos mais graves e aprendendo novas práticas criminosas.

Para Marco Pereira, quando uma pessoa entra no sistema prisional, tem que aderir a uma facção para sobreviver. “Quando o detento adere a uma facção, fica protegido e comprometido com ela. Se não adere à facção, acaba virando alvo quando ocorrem as rebeliões, algo similar ao ditado ‘se não está comigo, está contra mim’. “O risco está ocorrendo porque aqueles que não aderem, que não pertencem à facção é aonde eles invadem e ocorre o massacre”, frisou.

Massacres em presídios podem voltar a acontecer

Justamente por conta da falta de resolução dos problemas, que o presidente da Comissão de Acesso ao Sistema Carcerário acredita que outras rebeliões, com mortes, possam voltar a ocorrer. Apesar de não querer causar pânico na população, Pereira ressalta que a sociedade e a Segurança Pública precisam ficar em alerta, atentar para o fato que o sistema prisional só está aumentando e se preparar para evitar que em 2018 não venha a acontecer o que aconteceu em janeiro deste ano, já que pouco foi feito para solucionar essa questão. “Eu não estou olhando de forma positiva. Não quero aqui criar uma síndrome do pânico, mas o sistema está muito cheio e o caldeirão pode explodir de novo. Ou seja, após um ano, pode ocorrer o que aconteceu porque continua a ter isso”, pontuou.

População precisa fazer a sua parte na socialização de ex-detentos

Uma das soluções para o problema parte da própria população, que pode trabalhar na ressocialização dos detentos, em especial, daqueles que são réus primários, sem antecedentes.

“A sociedade precisa entender que a solução não é apenas colocar a pessoa lá dentro, porque um dia ela vai sair. Quando um detento sai do sistema e procura por um emprego, nós vamos trabalhar junto, nós temos que dar a oportunidade. Para prender quem tem que ficar preso e a partir daí, acompanhar quem possa cumprir medidas cautelares”, disse Marco Pereira.

Já a meta da OAB-RR, segundo o presidente da Comissão de Acesso ao Sistema Carcerário, é continuar acompanhando a aplicação das verbas, saber como está o andamento da nova penitenciária em Rorainópolis, acompanhar a reforma da Pamc, as questões do monitoramento eletrônico e das obrigações do poder executivo, além da orientação às famílias dos detentos através da Comissão de Direitos Humanos. “Do Poder Judiciário, nós vamos buscar ressaltar junto aos juízes a importância do seu papel e esse cuidado de inserir cada vez mais, diminuir essa população carcerária”, concluiu Pereira.

Para Comissão de Direitos Humanos, mudanças estão ocorrendo aos poucos

Em contrapartida, a Comissão de Direitos Humanos da OAB-RR acredita que o sistema ainda é imperfeito, mas reconhece que a administração atual vem desenvolvendo algumas reformas visando melhorar as instalações e acomodações para dar condições, ainda que mínimas, para que os internos possam cumprir sua pena com dignidade. 

A primeira delas, segundo Lucilane França, membro da Comissão, é a instalação de políticas penitenciárias e da força-tarefa entre a Defensoria Pública Estadual, o Ministério Público Estadual, o Tribunal de Justiça (TJRR) e a OAB-RR. “Na época do massacre, a Pamc estava com a população carcerária de cerca de 1.500 internos e hoje alguns detentos foram beneficiados pela progressão de regime e livramento condicional, diminuindo assim o número de reeducandos para 1.200”, frisou.

A segunda é a garantia de abertura de 300 novas vagas pela Sejuc que, de certa forma, aliviará a superpopulação e, em terceiro lugar, a ampliação do prazo de permanência dos reeducandos que estão na Cadeia Pública até 1º de março, executado pelo TJRR. “Esperamos que novos incidentes não se repitam e que já esteja tudo sanado até março, para que todos os detentos afastados voltem e voltem com segurança. Com a ampliação da Pamc, vai ter segurança para quem está lá dentro e para quem está aqui fora. A CDH prioriza o direito à vida”, finalizou Lucilane.

Relembre: “Guerra de facções deixa 33 mortos em presídio de Roraima”

Divulgado em primeira mão pela Folha, a chacina na Pamc ocorreu na madrugada do dia 6 de janeiro e resultou na morte de 33 detentos. Segundo informações repassadas à época pela Secretaria de Justiça e Cidadania, Polícia Militar, Instituto Médico Legal e pelos familiares dos presos, as mortes ocorreram em razão de uma briga de facções.

Armas improvisadas construídas pelos próprios presos com vergalhões, pedaços de madeira e tijolos foram usadas para matar com crueldade 33 pessoas. Os detentos tiveram as cabeças e membros decepados, além dos corações arrancados. Os corpos foram alinhados no corredor que dá acesso às alas e um espaço denominado “área da cozinha”.

A chacina aconteceu dias depois de uma rebelião, também com mortes, no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), no Amazonas, e em outras unidades prisionais do país, no Rio Grande do Norte, Santa Catarina e Paraná. (P.C.)