OPINIÃO

Kino-Makunaima 5: migração e superação sob o olhar do migrante

Éder Santos

O documentário ‘Valeu, Boa Vista’, curta metragem no estilo do cinema direto, dirigido em 2020 por Adriana Duarte, é um retrato dos desafios e da superação da população migrante no estado de Roraima. A experiência óptica e sonora que se tem ao apreciar o filme eleva os sentidos para perceber as cantorias, os rios, as paisagens e as narrativas captadas com emoção, de pessoas que são heróis e heroínas de um tempo presente, habitante da fronteira norte amazônica.  

O Brasil acolhedor está nas telas de ‘Valeu, Boa Vista’, pois reflete a percepção dos realizadores do audiovisual, que também são migrantes e encontraram seus espaços para morar, estudar e trabalhar. Mesmo enfrentando uma avalanche de atitudes e discursos carregados de xenofobia e racismo, proveniente dos discursos oficiais do governo brasileiro, entre os anos de 2018 e 2022, quando registrou-se a ascensão da extrema direita mundial, os trabalhadores e trabalhadoras, estudantes, artistas, indígenas de outras nações que vem para o Brasil, demostram a força da superação, transformando as lutas em conquistas.

O filme, feito sob financiamento da Lei Emergencial Aldir Blanc, traz para o primeiro plano a ação e a presença de homens e mulheres que seguem firmes no processo de diáspora, notadamente, africanos, indígenas e latinos. Pessoas que entram no nosso país cientes dos desafios que é adequar-se em solo estrangeiro. O Brasil tem em sua trajetória o registro desse encontro de mundos. É pelo trabalho e pela presença potente afrodiaspórica, afroquilombola e afro-ameríndia que nosso país foi construído. Um passado marcado pela violência contra esses mesmos povos que foram submetidos à escravidão pelos colonizadores europeus.

Na dimensão da memória, o curta ganha mais importância ainda, uma vez que trata no tempo presente, questões ainda em debate na sociedade brasileira, que são os direitos humanos, a luta de classes, a luta de imagens e o preconceito racial. Esse passado jamais deve ser esquecido, pois o Brasil segue consolidando sua democracia, criando espaços de acolhimento para os estrangeiros como preceitua os acordos internacionais. O curta demonstra a capacidade que cada migrante tem de reinventar-se com os seus e com os outros, em meio a um cenário de desafios e incertezas.

Como apontou o professor Kabengele Munanga (USP), em sua obra: ‘Negritude: usos e sentidos’, “a tomada de consciência de uma comunidade de condição histórica de todos aqueles que foram vítimas da inferiorização e negação da humanidade pelo mundo ocidental, a negritude deve ser vista também como afirmação e construção de uma solidariedade entre as vítimas”. Temos um berço em comum, a mãe-África, portanto, somos afrodescendentes, com fronteiras impostas ao longo da história da humanidade, construídas sob armas e guerras, onde nem sempre a diplomacia foi a mediadora, com um processo de negação da história do colonizado e de sua imagem positiva.

O curta em tela tem esse conteúdo ontológico que nos ajuda a refletir sobre nossa condição, valores e o espaço do outro. A cuidadosa fotografia do filme também é assinada por Adriana, cineasta venezuelana, que coleciona prêmios, como o conquistado na França com o filme produzido em Roraima, intitulado Palasito (Dir. Alex Pizano, ficção, 2021, 25 min), quando foi premiada com a melhor fotografia no Festival Internacional Paris International Short Festival, em 2022.

Valeu, Boa Vista é, em termos deleuzeanos, a imagem-tempo que traz o encontro visual de povos do Brasil, com Benin (África), Venezuelanos, Tuyukas e Waraos, todos e todas que compõe o caldeirão cultural imagético, de movimentos, de lições de vida e afeto e que demonstram a vivacidade do cinema produzido em Roraima. Este é um cinema amazônico de fronteira que nos orgulha pela qualidade estética e de conteúdo, que permeia a economia da cultura, a geração de renda, a empregabilidade e, o melhor: o acolhimento humano.

Éder Santos é presidente da Associação de Cinema de Roraima, jornalista, sociólogo, doutorando em Geografia pela UNIR, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Modos de Vidas e Culturas Amazônicas (UNIR), da Mostra Internacional do Cinema Negro (SP) e do Comitê Pró-Cultura Roraima.

** Os textos publicados nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião da FolhaBV