OPINIÃO

Para não dizer que não havia milicos na trama

Sebastião Pereira do Nascimento*

Desde que se tornou um problema do tamanho do Brasil, a partir de 2018, Jair Bolsonaro acumula na justiça uma longa lista de crimes a contravenções. Para esculpir esse cenário de barbáries, Bolsonaro não estava sozinho, teve ajuda de muita gente — igualmente ameaçadora como ele. Primeiro ele foi eleito por um contingente de eleitores, atingidos pela falência intelectual, que acreditavam piamente nas deformidades de suas palavras e nos seus gestos repletos de ressentimentos hostis e desvalor humano. Eleito, a partir de uma retórica de intolerância, ódio e violências diversas, Bolsonaro criou as condições confortáveis para que suas palavras e seus mandos fossem ainda mais disseminados entre as pessoas mais passiveis de doutrinação.

Ao invés de levantar bandeira a favor dos problemas do país (educação, cultura, saúde, meio ambiente, justiça, etc.), o então presidente, abriu a janela para aqueles que se sentiam enjaulados e os “autorizou” externarem seus mais tóxicos sentimentos, além de fazer alusão à ditadura militar e defender o armamento entre a população. Com isso, Bolsonaro deixa um rastro de destruição no país, demolindo as políticas públicas e negligenciando outras, incentivando a selvageria e a ruína da democracia.

Na esfera política, o ex-mandatário facilitou a difusão do centrão, uma corja de políticos fisiologistas e conservadores que recobre a política do país quase inteiro e que ajudou a renovar o perverso feudalismo político. Estimulado pelo negocismo praticado pelos tais vassalos e tal suserano, o centrão passou controlar grandes fundos partidários e eleitorais, além de emendas parlamentares, recursos públicos com os quais preservam e/ou ampliam seus currais eleitorais e avançam sobre prerrogativas do poder Executivo, sem aderir as mesmas responsabilidades.

Diante dessa incursão por dentro dos crimes e contravenções, Bolsonaro completa seu passeio quando passa trazer as Forças Armadas para as suas insanas aventuras, fazendo renascer uma espécie de protagonismo nos diversos escalões das Forças; algo contido desde o fim da ditadura militar. Essas Forças, ávidas pelo poder, bastou uma faísca para que se assanhassem e se demovessem do seu papel constitucional (com bastante adesão ao bolsonarismo), como vimos durante todo o governo do então presidente.

A intenção de Bolsonaro era de que as Forças Armadas saíssem dos quartéis e fizessem coisas que não são da sua competência, sujando a farda das Forças no mar de lama. Embora os Comandos das Forças Armadas não estivessem envolvidos no esquema de um plano golpista, mas, de certa forma, compactuavam com os desmandos de Bolsonaro, com maior frenesi as fileiras abaixo dos generais, que aventavam interesses em participar do golpe caso houvesse um chamado do ex-presidente, como ficou claro nas investigações sobre os atos de selvageria de 8 de janeiro.

Por exemplo, conforme as investigações, após a derrota de Bolsonaro nas urnas, um militar lotado no Estado-Maior do Exército, o coronel da ativa Jean Lawand pedia que o presidente decretasse uma intervenção das Forças Armadas para minar a eleição de Lula. Mensagens de Lawand encontradas no celular do tenente-coronel Mauro Cid, então ajudante de ordens de Bolsonaro, cobravam providências dizendo que se a cúpula do Exército não apoiasse o golpe, o restante da corporação cumpriria ordens para uma intervenção. O militar chegou a prometer a Bolsonaro a ajuda de um general. Lawand disse a Cid que o então subcomandante de Operações Terrestres do Exército seguiria a determinação do presidente para uma ruptura caso ele desse ordem.

Por outro lado, o tal ajudante de ordens de Bolsonaro, fazia algumas ponderações, mas não censurava os golpistas. Lamentava e dizia que o presidente não poderia ordenar uma intervenção porque não confiava no Alto Comando do Exército. Outros militares da ativa também transmitiam seus desatinos ao Planalto, como ficou elucidado pela PF. Onde o tenente-coronel Marcelino Haddad enviou a Mauro Cid três documentos usados para redigir um plano que anularia a eleição, afastaria ministros do TSE e decretaria uma intervenção. Portanto, sobram evidências de movimentações concretas de militares tanto da reserva quanto da ativa na tentativa fracassada de golpe.

O que podemos considerar é que muitos oficiais superiores faziam vistas grossas, enquanto outros de menor patente (ou sem patente) agiam ardilosamente em conjunto com os selvagens radicais acampados em frente aos quartéis. Desses algozes da democracia, enquanto as investigações se aprofundam no submundo de cada um, evidenciam que muitos deles são estelionatários, agressores, traficantes de drogas, vilipendiadores, perdulários, corruptos, lesadores da pátria, etc. Coincidência ou não, guardam algumas similaridades com o principal mentor desses atos antidemocráticos.

Bolsonaro, além da pouca habilidade retórica, vai além da insanidade mental, assim como seus sequazes que acreditam que a Terra é plana (mesmo contra todas as evidências científicas), e ainda insuflados por afirmações falsas passam devanear disparates como visto entre os bolsonaristas presos em função dos ataques em Brasília, quando muitos tinham a concepção de que a derrubada do governo Lula seria uma vitória espiritual, uma espécie de sacramento. No relato de um dos investigados pela Polícia Civil (e divulgado pelo G1), ele disse que foi aconselhado por irmãos da Assembleia de Deus do Guará (Brasília) para participar do movimento golpista em frente ao QG do Exército. “Que acreditava que o Governo Lula iria cair; que ainda acredita que o Governo Lula irá cair; que acredita que se fizer algo contra Lula irá para o céu; que acredita que vai ascender quando Jesus voltar, pois irá combater o Governo Lula; que acredita que Lula iria fechar as igrejas, pois vira Lula falando tais coisas”.

Após a derrota de Jair Bolsonaro nas eleições de outubro de 2022, apoiadores radicais do ex-presidente inconformados com o resultado das urnas, passaram a alimentar a expectativa de que o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva não tomaria posse. Consolidando a teoria de que a conspiração é uma característica dos perdedores, diversas linhas conspiratórias sobre o que poderia acontecer passaram a circular nas redes sociais, com mensagens falsas que previam até a prisão de Lula e de Alexandre de Morais, enquanto outras confabulavam sobre um golpe militar em planejamento.

Bolsonaro, sabendo que não tinha apoio maciço da população brasileira, buscou entre seus pacos apoiadores mais radicais, além dos egressos da caserna e parte das forças de segurança pública, a possibilidade de criar um caos para que pudesse chamar as Forças Armadas e colocar em práticas suas desajustadas intenções. Felizmente seu arrasado projeto golpista não se sustentou sem a efetiva participação do Comando Maior do Exército.

Mas diante de tudo que ocorreu, as Forças Armadas agora tentam se excluir dos atos terroristas, mas as investigações policiais, a CPI dos atos golpistas e a própria imprensa têm divulgado cada dia mais informações sobre o vínculo de componentes militares no que tange algumas ações orientadas, além da proteção dos extremistas sediados em frente aos quartéis do Exército em vários Estado do país.  

Com essas evidências, fica difícil acreditar que o papel das Forças Armadas são realmente apenas para defender o povo brasileiro. As provas do envolvimento de militares da ativa não criam só um constrangimento para os comandantes. Elas mostram também que as Forças serão obrigadas a conviver por um bom tempo com a ilusão do golpe bolsonarista. Assim como convive com as atrocidades cometidas durante a ditadura militar. Por tudo isso, as Forças Armadas precisam dar respostas convincentes ao povo brasileiro, sendo o primeiro passo levar à prisão todos os militares que conspiraram para a clara tentativa de golpe.  

Por parte de Bolsonaro — por todos os males causados durante os quatro anos de governo —, a fatura pelos prejuízos causados ao país, já está chegando em parcelas. Bolsonaro sofreu três grandes derrotas em oito meses. O fracasso na eleição foi a primeira e até agora a mais humilhante. A segunda foi a frustração do plano de golpe com o qual contou com apoio de vários militares da ativa. A terceira veio pelo TSE com sua inelegibilidade por oito anos. Contudo, esses três castigos são modestos para conjunto da obra de Bolsonaro. Vem mais castigos por aí. Ele não pode sair ileso pelos males que cometeu ao Brasil. Nem ele, nem seus comparsas, todos devem pagar na cafua conforme a conta de cada um. É a lei!

*Filósofo, escritor, consultor ambiental. 

** Os textos publicados nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião da FolhaBV