OPINIÃO

Agricultura familiar: um caminho para erradicar a fome

Sebastião Pereira do Nascimento*

O fato de o Brasil ser uma potência no agronegócio e ser um dos maiores produtores mundiais de “alimentos”, como dizem por aí afora, na verdade, o que temos são milhões de brasileiros miseráveis, passando fome, ao lado de imensas monoculturas envenenadas. Um tipo de agricultura e pecuária empresarial que causa fortes impactos ambientais, concentração de renda, conflitos no campo, ficando muito aquém do que poderia contribuir efetivamente para um verdadeiro desenvolvimento socioeconômico e ambiental.

O agronegócio foca apenas nos interesses privados de grandes corporações agropecuárias, gerando também latifúndios, em detrimento da agricultura familiar. Esse negócio não poderia ter outro resultado, senão os altos índices de degradações. O Brasil, sendo uma das maiores economias do mundo, nesses últimos anos retornou ao mapa da fome da Organização das Nações Unidas, com 125,2 milhões de brasileiros em algum grau de insegurança alimentar e 33,1 milhões de pessoas sem ter o que comer. Portanto, é este o agronegócio que tantos defendem como defendem o uso maciço de agrotóxicos — “elixires da morte” como cita Rachel Carson, no livro Primavera Silenciosa. Numa escala assustadora, segundo o Instituto Nacional do Câncer, os agrotóxicos vêm cada vez mais comprometendo a saúde humana, não só das pessoas que consumem seus produtos envenenados, mas também dos trabalhadores que exercem atividades dentro da produção ou de comunidades circunvizinhas às áreas de cultivo.

Atualmente, com propósito de mitigar a fome dos brasileiros e outros males advindos do sistema agronegócio, o governo federal, lançou no último mês de junho o plano de crédito para agricultura familiar, que somando todas as políticas voltadas aos pequenos agricultores, terá o orçamento de R$ 77,7 bilhões para a safra 2023/2024. Embora não seja o suficiente, esse volume é 34% superior ao do ano passado e o maior da série histórica. Apesar disso, é bem inferior ao estratosférico orçamento destinado, também pelo presidente Lula, ao agronegócio na ordem de R$ 364,22 bilhões para financiar a danosa agricultura e pecuária empresarial no país. Os recursos vão apoiar a produção agropecuária, baseadas em grandes monoculturas, até junho de 2024, refletindo um aumento de cerca de 27% em relação ao governo passado, que foi de R$ 287,16 bilhões. Com esse recurso podemos esperar também, embora não seja o desejável, a expansão da monocultura e o aumento dos impactos ambientais causados por essa produção. Algo que contraria o plano do Governo Federal de zerar o desmatamento até 2030.

No caso do plano para agricultura familiar, o crédito rural soma ações como assistência técnica e extensão rural, garantia de preços mínimos para os produtos provenientes de pequenos produtores, dentre outras medidas relativas à agricultura familiar. As ações destacam-se ainda pela redução da taxa de juros, de 5% para 4% ao ano, para quem produzir alimentos essenciais para a mesa dos brasileiros. Os agricultores familiares que optarem pela produção sustentável de alimentos saudáveis, com foco em produtos orgânicos, terão ainda mais incentivos, com juros de apenas 3% ao ano no custeio e 4% no investimento. O objetivo é estimular a produção de alimentos, no sentido de contribuir com a segurança alimentar do país, além de incluir a agricultura familiar na esfera da economia rural (algo conhecido modernamente como bioeconomia).

Conforme a CONAB, o plano prevê ainda mudanças no microcrédito destinado aos agricultores familiares de baixa renda, onde o enquadramento da renda familiar anual será ampliado de R$ 23 mil para R$ 40 mil e o limite de crédito de R$ 6 mil para R$ 10 mil. O fomento produtivo rural, destinado aos agricultores em situação de pobreza, também será corrigido de R$ 2,4 mil para R$ 4,6 mil por família. Essa ação é do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social e Combate à Fome (MDS). As mulheres rurais também ganham uma linha específica neste plano da agricultura familiar. Trata-se de uma nova faixa no Pronaf Mulher, com limite de financiamento de até R$ 25 mil por ano e taxa de juros de 4% ao ano destinada às agricultoras com renda anual de até R$ 100 mil. As quilombolas e assentadas da reforma agrária terão um aumento no desconto do programa de crédito Fomento Mulher de 80% para 90%.

Ainda o Plano Safra também traz de volta o Programa Mais Alimentos, com medidas para estimular a produção e a aquisição de máquinas e implementos agrícolas específicos para a agricultura familiar. O programa tem como foco melhorar a qualidade de vida das agricultoras e agricultores familiares, aumentar a produtividade no campo. E também tem apoio para as comunidades tradicionais e indígenas que vão passar a ser incluídos como beneficiários do PRONAF. 

Dentro do plano da agricultura familiar, serão assinados decretos que facilitam o acesso à terra. As medidas visam garantir mais crédito para a instalação das famílias, o que possibilita a compra de itens de primeira necessidade, bens duráveis de uso doméstico ou equipamentos, para que o pequeno agricultor inicie ou possa investir na produção. Há também a criação de nova modalidade voltada para a juventude rural, Fomento Jovem. Será criada uma faixa de acesso exclusiva para a juventude ao Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF), criando melhores condições para os jovens que querem viver no campo e ter acesso à terra.

Essas novas modalidades de crédito, destinadas à erradicação da fome e a retomada de políticas públicas para a valorização da agricultura familiar, foram algumas das principais pautas abordadas na agenda eleitoral do presidente Lula em 2022. Ciente de que a produção do agronegócio, ainda que envenenada, não atende à necessidade alimentar das famílias brasileiras, o governo Lula mostra que existe um possível caminho para erradicar a fome no Brasil, baseado na agricultura tradicional. Um modelo de desenvolvimento rural, inserido numa nova postura de consciência, agregada ao tripé da sustentação: social, econômica e ambiental.

Dentro deste contexto, está inserida a agroecologia, a qual se enquadra perfeitamente ao plano da agricultura familiar, onde os vários saberes e atores se encontram e trocam efetivamente experiências empíricas, e se apropriam também de informações técnico-científicas no sentido de produzir um bem maior à sociedade em geral. A agroecologia passa a ter esse destaque porque as pessoas do campo não precisam apenas de políticas públicas, na perspectiva do alimento, da saúde e do ambiente, é preciso considerar a natureza como sujeito, e, nessa relação, logo percebe-se que a agroecologia oportuniza esse refletir e agir de forma compactuada e isenta de prejuízos ambientais.

Portanto, esse plano de valorização rural, lançado pelo governo Lula, traz a agroecologia para a centralidade dessas políticas públicas. Sendo exatamente o tipo de política rural que o Brasil necessita para avançar num desenvolvimento ajustado ao modelo de vida construído historicamente pelos verdadeiros povos do campo que, sem sombra de dúvidas, é quem coloca realmente comida na mesa dos brasileiros.

Em adição, aqui é importante ressaltar dois pontos: primeiro é que diante da ampla demanda do plano, é admissível haver também ações que contribuam para habilitar e fortalecer as organizações (camponesas, indígenas, quilombolas, etc.), que possam ser responsáveis pelas ações de planejamento, gestão e, junto aos entes públicos, fazer parte da execução das políticas voltadas aos pequenos produtores. Outro ponto é que as linhas de sustentação dessas políticas públicas possam ser bem definidas e comprometidas com suas reais finalidades, que é de garantir uma produção agrícola saudável e construir um entendimento diante da intra-relações dos produtores e das inter-relações produtores e natureza, o que permite trabalhar não apenas a consciência ambiental, mas também a transformação social, política e bioeconômica, diferente do estéril agronegócio, onde seus praticantes preferem sentir o cheio de veneno no campo do que sentir o cheiro de chicória na feira. Esses são os únicos que mais ganham com o agronegócio, no entanto, nenhum deles conseguem vestir a nudez da alma com milhões de reais.

* Consultor ambiental, filósofo e escritor.