OPINIÃO

Strawberry fields

Walber Aguiar*

Lá em casa tem um poço, mas a água é muito limpa.

                                                            Renato Russo

Manhã. Sol de agosto. Céu indefinido entre o cinza e o azul, entre o branco e o anil. Mãe chamando, menino correndo, galinha ciscando. Lembranças espalhadas no quintal. O velho poço matava mais que a sede naqueles dias; matava também a nostalgia do não vivido, o desejo de entender o tempo e a solidão.

A manga com sal era o prato predileto, comido exaustivamente à sombra do velho cajueiro. De repente as valas abertas, bolinhas de gude, alagações. Diversão garantida. “Faculdade”, “Chinelão”, seu Pinheiro. Gente brincando no meio da rua, bandeirinhas estendidas, grito de gol na garganta, no inconsciente coletivo da rua de barro.

Era a velha Coronel Mota. Um templo sagrado, onde a devocionalidade estava sempre à flor da pele, onde a liturgia caminhava nos pés descalços da meninada. Tempo de crescer feito rama de batata, de espalhar sonhos, de esquecer do dia seguinte. Não havia ansiedade, bastava a cada dia o seu próprio mal.

Ali, à sombra da jaqueira conversávamos com os anjos, montávamos os planos, executávamos a vida. Caboco Clério com seu violão, Raimundo Arigó com sua roupa branca, Mário, com seu vigor juvenil, sua paixão pelo Vasco da Gama. A mangação corria solta, junto com a vibração, o vinho e os gols da seleção brasileira.

Só que o tempo passou, todo mundo foi embora, levando na bagagem a lembrança. Agora o assalto ditava a pressa, o sinal verde, a responsabilidade, a vida completamente agendada. Hoje, correndo pelos “campos de morango” da lembrança ainda vejo a figura de meu pai. Envelheceu sem crescer, cresceu sem perder a inocência. Virou uma relíquia no meio de um mundo convulso, corrupto e cheio de maldade.

Seu Genésio se tornou uma espécie de anjo da guarda de todos nós, muito embora careça de cuidado, carinho, afeto, companhia. Ainda cumprimenta as pessoas na rua, conversa na esquina, lembra da velha rua de piçarra e da geografia da infância. Seu trombone ainda toca nas terças mais cinzentas, anunciando que a festa vai continuar sempre.

Passando pela noite longa da tristeza, depois de perder duas mulheres que amava, o velho conseguiu entender que a saudade nunca morre, é mão de tinta em coração partido. Relembro a casa com varanda, o velho poço, a cerca do Lauriston. Mesmo sem ela (dona Maria), ele está lá, no mesmo endereço. Sei que falta a meninada, a manga com sal e sol, o grito de gol, a galinha ciscando.

Mas sua alegria de menino nunca vai acabar. Enquanto houver uma tarde quente, um colega, um trombone e um bom papo, ele estará sempre lá, à espera do sonho, da saudade, da alegria.

E era agosto. Não havia azar nem gato preto. Apenas o gosto de viver.

*Poeta, professor de filosofia, mestre em Letras, historiador e membro da Academia Roraimense de Letras. [email protected]