OPINIÃO

Kino-Makunaima 7: a ancestralidade afrodiaspórica e afirmação da imagem positiva dos povos de terreiro

Éder Santos

Jefferson Dias (Mestre Biriba)

Sobre o cinema, o filósofo Gilles Deleuze, metodologicamente, inicia uma pujante reflexão com base nos estudos de Henri Bergson, na qual diz que o cinema clássico é uma representação indireta do tempo, pois o que temos é a subordinação do tempo ao movimento e à ação. Esse é um cinema que ele chamará de imagem-movimento. O movimento é central na compreensão da película. É pela ação (ou movimento dos personagens) que quem assiste é conduzido a dançar com os olhos e acessar os sentidos do filme.  

O média metragem documental dirigido por Jeferson Dias (Mestre Biriba), intitulado “Matrizes Africanas de Boa Vista (RR): História e Memória” (Doc. 52 min. 2018) é parte dos produtos que o pesquisador elaborou em seu trabalho de mestrado profissional em preservação do patrimônio cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Tem em seu conteúdo a imagem-movimento, uma vez que permite adentrarmos nas casas de santo e nos terreiros para apreciar as manifestações sagradas das religiões de matriz africana com seus cantos, batuques e danças práticos em Boa Vista (RR).

‘Matrizes Africanas de Boa Vista’ é um filme inaugural sobre a cultura afrodescendente em Roraima que lança aos olhos da sociedade brasileira a história e os desafios das organizações religiosas que cultivam a matriz afrodescendente no extremo norte amazônico. Além disso, foram contempladas as religiões do Candomblé e Umbanda de Boa Vista-RR e para a realização do documentário foram difundidos, em sua narrativa, três eixos temáticos: Eixo I: História e Memória das Casas de Matrizes Africanas em Boa Vista; Eixo II: Liberdade Religiosa; e Eixo III: Políticas Públicas. O critério de escolha das lideranças para compor o documentário se deu por meio de um levantamento conforme as entrevistas realizadas no mapeamento realizado entre os anos de 2017 e 2018 pelo pesquisador Jefferson Dias, priorizando na escolha os quatro terreiros mais antigos da capital.

No desenvolvimento do “Matrizes Africanas de Boa Vista”, foi apresentada a importância do documentário para a preservação da memória, assim como para o fortalecimento das identidades dos terreiros de matriz africana ou afro-brasileira, além da possibilidade de ouvir as lideranças dos terreiros como sujeitos ativos na construção do conhecimento por utilização da oralidade. Nesse sentido, Vanessa Zandonade e Maria Cristina de Jesus Fagundes conceituam a importância do documentário como instrumento de mobilização social: “Vídeo documentário se caracteriza por apresentar determinado acontecimento ou fato, mostrando a realidade de maneira mais ampla e pela sua extensão interpretativa”. O jornalista Walter Sampaio, ressalta a sua importância ao afirmar que “se trata de um estágio evolutivo do telejornalismo. Mesmo que alguns autores reafirmem seu valor, observa-se que o vídeo documentário é um gênero jornalístico pouco explorado na mídia televisiva brasileira, sendo uma linguagem regularmente usada no cinema”.

Retomando o passado em um tempo presente, lembremos de desbravadores como Marc Ferrez, que deixou um legado primoroso e teve uma importância para o Brasil no século XIX devido aos seus trabalhos realizados com a técnica da fotografia. Marc Ferrez exerceu uma atividade intelectual significativa para o Brasil por ser um dos pioneiros da cinematografia na América do sul e ter inserido no país a técnica da fotografia. Seu valor foi reconhecido nos jornais após seu falecimento em 1923.

Gilberto Ferrez, no texto da Revista, cita um trecho do Jornal “La película”, de Buenos Aires, de primeiro de fevereiro de 1923:  “[…] o senhor Marc Ferrez seguiu as tradicões de sua família, dedicando-se à arte gráfica em suas variadas espressões. Foi o primeiro a introduzir no Brasil a cinematografia e o nome da sua casa está vinculado ao desenvolvimento que o comércio de filmes teve no país irmão. Senhor Marc Ferrez morre em idade avançada, desaparecendo como o verdadeiro pioneiro do cinema na América do Sul”.

O cinema traz um desdobramento do tempo, uma conexão de movimento e sentidos que o indivíduo alcança em seu Ser mais profundo. É um desbravar de trajetos e que atingem dimensões da memória, história, valores, significados, sentimentos, estranhamentos, ressignificam valores e mudam a própria trajetória da vida, faz pensar – refletir. Cada produção, congela o tempo e marca um futuro, assim como Marc Ferrez fez, ao descobrir as entranhas do Brasil pelo olhar de sua lente.

O filme Matrizes Africanas constrói um acervo imagético importante para a imagem de afirmação positiva do afro-ameríndio em Roraima. Esse conteúdo contribui para o debate sobre o pertencimento e a diversidade sociocultural brasileira, que deve estar na pauta da produção cinematografia de um país que foi o último a abolir a escravidão e ainda é resistente em implementar a Lei 10.639/2003, que incluiu oficialmente nos currículos escolares o ensino de história e cultura afro-brasileira.  

Documentário: Matrizes Africanas de Boa Vista (RR): História e Memória, disponível em:

Éder Santos é presidente da Associação Roraimense de Cinema, jornalista, sociólogo, doutorando em Geografia pela UNIR, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Modos de Vidas e Culturas Amazônicas (UNIR), da Mostra Internacional do Cinema Negro (SP) e do Comitê Pró-Cultura Roraima.

Jeferson Dias – (Biriba), é mestre em Preservação do Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN; Especialista em Filosofia da Religião (UERR), Pós-graduado em docência do nível Superior e Bacharel em Direito. Membro do grupo de Estudo e Pesquisas em Africanidades e Minorias Sociais (UFRR), Comitê Gestor da salvaguarda da Capoeira de Roraima e do Comitê Pró-Cultura Roraima. Mestre de Capoeira pelo Grupo Senzala e Fundador do projeto social Instituto Biriba. Foi Presidente da Federação Roraimense de Capoeira (2019 à 2022). Foi professor de Direito Penal, Ética, Bioética e Legislação Trabalhista na instituição Ser Educacional. Autor obras autorais como livros, Cds, shows, documentários e outros. Atua nas seguintes áreas: Direitos Culturais, Direito Autoral, Patrimônio Cultural, Políticas Culturais, Economia Criativa, Liberdade Religiosa e Cultura Popular.