OPINIÃO

O combate ao narcogarimpo em Roraima e sua possível relação com o novo cangaço e o domínio de cidades

Francisco Xavier Medeiros de Castro*

Sempre se falou com muito orgulho que em Roraima, diferente de outros Estados brasileiros, não existe local em que as forças policiais não pudessem entrar. Conhecidas como “Black Spots” essas porções territoriais se caracterizam por serem dominadas por forças insurgentes não-estatais, fortemente vinculadas ao crime organizado, desempenhando funções que, originalmente, seriam atribuições próprias do poder público. É o exemplo de diversas “comunidades” na região sudeste onde, para cada “subida” da polícia, se faz necessário um planejamento de guerra. No entanto, nosso antigo motivo de orgulho caiu por terra quando se constatou que, em diversos pontos da Terra Indígena Yanomami, onde ocorre a exploração mineral através do garimpo ilegal e do narcogarimpo, se situam territórios onde o governo não bota o pé. Ou pelo menos, até agora, não botava.

Desde o começo do ano, o governo federal vem organizando frentes integradas entre Forças Armadas e Forças de Segurança Pública, objetivando a desintrusão da Terra Indígena Yanomami, na tentativa de livrá-la da ação do garimpo ilegal e do narcogarimpo; afinal, atribui-se à exploração mineral ilegal nessas áreas como a principal responsável pelos danos ambientais que afetam de forma mortal as comunidades originárias que habitam aquela região.

Após as primeiras ações coordenadas pelo governo federal, percebeu-se um acentuado movimento de retorno dos operadores do garimpo ilegal às cidades, sendo cedo para se aferir se esse êxodo irá se refletir em aumento da criminalidade. No entanto, observou-se que esses primeiros esforços não conseguiram retirar da Terra Indígena Yanomai um grupo específico que continua a explorar o minério: as organizações criminosas, com destaque para o Primeiro Comando da Capital (PCC), que opera no local sob uma eficiente logística constituída por aeronaves, pessoal especializado e forte segurança, com disposição suficiente para enfrentar o braço armado estatal. Foi o que se viu no confronto ocorrido entre faccionados e agentes do IBAMA e da Polícia Rodoviária Federal, no dia 01 de maio de 2023, que teve como saldo quatro criminosos mortos, após terem recebido a tiros os agentes.

Pela imensa extensão da área explorada, bem como pelas dificuldades naturais de acesso que implicam em um custo elevadíssimo para a manutenção das operações de repressão ao narcogarimpo, não foi possível uma imediata continuidade da desintrusão.

No entanto, uma recente medida do Ministério da Justiça e da Segurança Pública pode ser a esperança para a continuidade das ações das forças federais de segurança naquele território. Datada em 15 de agosto de 2023, uma nova portaria passa a autorizar o emprego da Força Nacional de Segurança Pública em apoio à Polícia Federal, no Estado de Roraima, na Terra Indígena Yanomami, “nas atividades e nos serviços imprescindíveis à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, em caráter episódico e planejado, por noventa dias”. A sinalização dessa continuidade pode representar uma excelente oportunidade para que, de forma tecnicamente orquestrada e dotada da estrutura correta para a viabilização das operações policiais, se vislumbre o sufocamento do narcogarimpo e suas nefastas consequências.

Contudo, é necessário que o poder público, em todos os seus níveis, tenha disposição e competência para prever e se preparar para as possíveis consequências do redirecionamento da força de trabalho do crime organizado após uma definitiva retirada de seu contingente das áreas de garimpo da Terra Indígena Yanomami. Essa prospecção de cenário, bem como o planejamento e o preparo para tais respostas, deixam de ser responsabilidades somente do governo federal, passando a ser uma responsabilidade compartilhada pelo governo estadual e municípios, através de medidas preventivas, como o preparo e a capacitação de seus agentes para ações de imediata retomada da ordem pública, e da elaboração de planos de defesa para cenários caóticos que possam vir a se materializar, seja através de modalidades criminosas substitutas ao narcogarimpo ou, simplesmente, através de ações de retaliação às forças policiais, uma ação típica das organizações criminosas quando se veem sufocadas pelo poder estatal (queima de ônibus, ataque a instituições, ameaças a prédios públicos, etc).

Qual seria, então, o novo portfólio do crime organizado no cenário urbano roraimense, caso o governo federal, de fato, consiga lograr êxito no sepultamento do narcogarimpo?

Uma das principais características do crime organizado é sua capacidade de se reinventar, sempre buscando novos segmentos que proporcionem um retorno financeiro rápido e fácil. Não foi por acaso a escolha do garimpo como uma das principais atividades do PCC em Roraima. Além do lucro obtido com os minérios (ouro e cassiterita, principalmente), essa atividade também possibilitou uma eficaz lavagem do dinheiro oriundo do tráfico de drogas. Inteligência, influência e sagacidade não faltarão às organizações criminosas para que prossigam com suas atividades.

No ano de 2003, Roraima registrou o único caso do que se define hoje como “Novo Cangaço”. Fora esse caso, poucos episódios relacionados à explosão de caixas eletrônicos foram registrados, porém, foram imediatamente sufocados pela enérgica e eficiente ação das polícias.

O Novo Cangaço se caracteriza pela ação planejada e extremamente violenta do crime, e geralmente escolhe cidades pequenas, onde os criminosos tomam uma agência bancária, e se utilizam de reféns como escudos humanos. Em alguns casos, imobiliza-se a estrutura da polícia local de modos que a ação flua sem maiores dificuldades para os criminosos. Essa modalidade se diferencia do chamado “Domínio de Cidades”, pelo fato deste exigir um planejamento e emprego de meios mais elaborados por parte dos criminosos, caracterizando-se pela tomada quase total de uma cidade com maior população, empregando uma verdadeira logística de guerra.

Os grupos criminosos que protagonizam tais ações têm espalhado o terror em diversas regiões do país. Mas também se contabilizam memoráveis respostas da polícia, a exemplo da tentativa frustrada de domínio de cidades pela Polícia Rodoviária Federal em Varginha (MG), em 2022, e da rápida resposta e captura de criminosos nos Estados do Mato Grosso e Goiás, em 2023. Em ambos os casos, a proatividade policial, baseada na inteligência prospectiva, permitiu a neutralização e captura dos criminosos.

Não obstante os altos custos das operações policiais para a definitiva resolução do problema do narcogarimpo, espera-se que o governo federal vá além da assinatura de portarias que estabeleçam a responsabilidade desta ou daquela força policial na Terra Indígena Yanomai. O direcionamento de recursos da União e o reforço das capacidades orçamentárias para a estruturação de logística e de pessoal permanente das instituições (Forças Armadas, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, IBAMA, FUNAI) terá que adquirir o status de uma política de Estado prioritária, se a intenção do Ministério da Justiça e da Segurança Pública realmente for agir de forma resolutiva.

Ademais, espera-se que as forças de segurança pública do Estado de Roraima e de seus municípios estejam em condições de oferecer a resposta adequada e proporcional para o caso de nossas cidades serem escolhidas como palco para o Novo Cangaço ou para o Domínio de Cidades. Para esses casos, as medidas preventivas e proativas das polícias podem ser comparadas ao antídoto para veneno de cobra dentro da mochila: é melhor ter e não precisar utilizar, do que precisar e não ter!

*Coronel da ativa da Polícia Militar. Mestre em Ciências Policiais da Segurança e da Ordem Pública. Especialista em Gestão Estratégica de Segurança Pública.

** Os textos publicados nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião da FolhaBV