OPINIÃO

Chamas aliadas: Usando o fogo para mitigar o impacto dos incêndios florestais

Manejo Integrado do Fogo (MIF) contribui para reduzir o acúmulo de biomassa seca, formada por capim e pequenos arbustos, que funciona como material inflamável

Por André Luis S. Zecchin*

Incêndios florestais no Canadá, provocados pelo clima seco e quente, assim como pela grande quantidade de raios, espalharam-se por várias regiões do país, levando nuvens de fumaça a milhares de quilômetros dali, chegando à Europa. As chamas também arderam de forma devastadora no Havaí, provocando mais de 100 mortes e enormes prejuízos materiais, sendo considerado o maior incêndio florestal da história dos Estados Unidos. Os dois fatos recentes ilustram um cenário preocupante: incêndios florestais vêm se tornando uma realidade inconveniente cada vez mais presente em nossas vidas.

Segundo o MapBiomas, 185 milhões de hectares foram atingidos por incêndios no Brasil entre 1985 e 2022, sendo que o Cerrado e a Amazônia foram os biomas mais impactados, concentrando cerca de 86% das áreas atingidas no Brasil. Alguns cientistas, como o Dr. Stephen J. Pyne, arriscam dizer que estamos vivendo na época do Piroceno, um período na história do planeta Terra que rebatiza o Antropoceno, realçando o principal traço da humanidade: a nossa capacidade de manipular o fogo.

Ano após ano, acompanhamos nos noticiários incêndios cada vez mais severos que não só impactam os ecossistemas, como também as atividades econômicas que dependem de áreas naturais bem conservadas. As principais razões para essa crescente onda de incêndios estão relacionadas ao aumento das temperaturas ocasionado pelas mudanças climáticas, ao uso inadequado do solo,  e, por incrível que possa parecer, à exclusão do uso do fogo.

Por maior que seja o paradoxo, a exclusão do fogo em ecossistemas que evoluíram na sua presença vem ajudando a criar condições ideais para os grandes incêndios. Isso porque o acúmulo de biomassa seca (de capins e pequenos arbustos), funciona como material inflamável e deixa as paisagens prontas para arderem.

Infelizmente, esse assunto não é uma particularidade de países tropicais como o Brasil. As mudanças nos padrões climáticos e suas consequências não respeitam fronteiras, são desafios globais. Em 2017, a região norte de Portugal teve 500 mil hectares do seu território atingido por grandes incêndios, levando mais de 100 pessoas à morte. Em 2018, no estado da Califórnia, nos Estados Unidos, mais de 40 pessoas morreram e 7.600 construções foram atingidas por incêndios, levando a prejuízos de bilhões de dólares.

Devido à urgência do tema, 1.600 representantes de 90 países, entre especialistas e tomadores de decisão, se reuniram em maio na cidade do Porto, em Portugal, na maior conferência mundial sobre incêndios florestais (8th Wildland Fire Conference) para discutir e encontrar soluções para esse enorme desafio. A governança rumo a uma estrutura global foi o tema central do evento. Assuntos como o impacto dos incêndios sobre a natureza; a incorporação dos saberes dos povos tradicionais no manejo do fogo; a vulnerabilidade dos países mais pobres; e o papel das brigadas voluntárias foram pautas presentes em todas as discussões.

Depois do país anfitrião, o Brasil foi aquele com maior número de participantes. Estavam presentes representantes governamentais, bem como organizações da sociedade civil. Como representante da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza, pude apresentar a experiência de gestão de incêndios da Reserva Natural Serra do Tombador, localizada em Cavalcante (GO). Com a adoção da estratégia de manejo integrado do fogo, uma abordagem que associa aspectos ecológicos, culturais, socioeconômicos para gestão de incêndios, com objetivo de reduzir a severidade dos incêndios e conservar a biodiversidade, a equipe da Reserva conseguiu reduzir de forma significativa a recorrência dos grandes incêndios que historicamente atingiam a área.

Outro exemplo positivo no território é a campanha Defensores do Cerrado, que busca conscientizar a sociedade civil sobre a importância das brigadas voluntárias que trabalham na prevenção e no combate dos incêndios na região. Com a participação de diversas entidades ambientais, a iniciativa busca valorizar a atuação dos brigadistas, além de convidar empresas e demais organizações para contribuírem de diversas formas possíveis com o trabalho dos voluntários, que precisam de muito apoio para cumprirem sua missão.

O uso do fogo para o enfrentamento aos incêndios ainda é motivo de grande polêmica em nosso país. Por esse motivo, compartilhar experiências de sucesso é fundamental para ajudar a sociedade a entender o papel deste elemento-chave no manejo dos incêndios. Dentre as principais conclusões da Conferência, foram destacados a necessidade de os países fortalecerem a proteção dos ecossistemas para a prevenção dos incêndios e de aumentarem os esforços de manejo integrado do fogo para redução do acúmulo de material combustível, bem como criarem políticas públicas específicas e estruturas institucionais para lidar com o atual cenário dos incêndios.

Nesse sentido, na condição de organizadora do evento, a Agência para Gestão Integrada de Fogos Rurais de Portugal (AGIF) produzirá um documento com recomendações para subsidiar a estratégia do manejo integrado do fogo da Organização das Nações Unidas (ONU). Esperamos que as informações científicas sobre a aplicação dessa abordagem de manejo e as boas práticas existentes ao redor do mundo possam quebrar resistências e inspirar nossas autoridades para que possamos aprimorar as políticas públicas de prevenção aos grandes incêndios florestais.

*André Luis S. Zecchin é biólogo e gerente da Reserva Natural Serra do Tombador, localizada em Cavalcante (GO) e mantida pela Fundação Grupo Boticário