Francisco Xavier Medeiros de Castro*
Poucas profissões no mundo guardam um risco à vida de quem a exerce como a profissão policial. David Bayley (2001), reconhecidamente um dos pesquisadores que mais estudou e escreveu sobre “polícia”, ao definir que “polícia se refere às pessoas autorizadas por um grupo para regular as relações interpessoais dentro desse grupo através da aplicação da força física”, valida a prerrogativa sobre o monopólio da força estatal, aproximando essa assertiva dos conceitos de “estado” e de “poder” apresentados por Max Weber que afirma consistir o Estado em “uma relação de dominação do homem sobre o homem, fundada no instrumento da violência legítima”. Assim, a polícia, independente da forma ou do nome com o qual se apresente ao longo do tempo, sempre foi uma estrutura real e necessária para legitimar um Estado como tal.
Esse ensaio, no entanto, se ocupará com a fragilidade do cidadão que personifica esse poder estatal. “Ser policial” não se resume a “ter uma profissão”. “Ser policial”, em verdade, trata-se de uma condição, ou pode-se até dizer de um estilo de vida que obriga quem abraçou a carreira a submeter-se a um novo regramento social que modificará definitivamente sua rotina e de seus familiares.
Independente da área onde se escolha atuar (dentro de uma viatura, policiando parques em cima de um cavalo, investigando crimes, custodiando presos, checando passaportes em aeroportos, etc) ao se tornar policial, o indivíduo transmuta-se em um catalisador de demandas inimagináveis, estando ou não de serviço. Afinal, a condição de ser policial vinte e quatro horas por dia, e sete dias por semana, com o compromisso de proteger a sociedade com o sacrifício da própria vida, é um encargo inafastável por força de juramento.
Dada a lamentável evolução do crime organizado e seus métodos cada vez mais sanguinários e violentos de expansão de força e poder, diversos países têm sofrido retaliações por parte das corporações criminosas, em função das políticas de controle criminal impostas pelo estado. Comumente, essas represálias letais costumam atingir primeiro os operadores que atuam na ponta de lança desse enfrentamento.
No Brasil, entre os anos 2014 e 2021, registrou-se o assassinato de 2.399 (dois mil, trezentos e noventa e nove) policiais, conforme os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (ABSP, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020, 2021, 2022), o que nos dá a proporção macabra da morte de um policial a cada três dias. Porém, tão impactante quanto esse número é a proporção dos policiais que morrem fora do serviço: calcula-se que dois terços desses policiais assassinados estavam em seu momento de folga. Essa vulnerabilidade na folga do policial se potencializa por fatores como: não contar com o apoio imediato de um parceiro policial ao ser assaltado ou emboscado; não possuir treinamento para uso da arma de fogo em condição velada; não adequar o seu estado de alerta em ambientes de risco, entre outros.
Em função do aumento dos assassinatos de policiais no Brasil e no mundo, tem-se popularizado diversas publicações acadêmicas e profissionais sobre a vitimização policial. Nos últimos anos, multiplicaram-se os eventos como seminários, congressos e workshops sobre o tema, dividindo-se o cenário com capacitações e reciclagens profissionais cujo objetivo é preparar o policial para sobreviver em situações críticas quando esteja, principalmente, em sua folga.
Tanto na nova doutrina que passa a sedimentar a discussão sobre a vitimização policial, como nas capacitações que abordam a conduta de sobrevivência para a autoproteção policial, há a confirmação de um imperativo: a sobrevivência policial transcende a necessidade de somente se preocupar em sobreviver a um ataque letal. Manter-se vivo para o policial corresponde não apenas a sair ileso do assalto ou emboscada, ou saber realizar a “leitura” de ambientes para empreender uma fuga ou um enfrentamento.
Emprestando as definições do psicólogo Alexis Artwohl (2002), em sua publicação “Encontros de Força Mortal: O que os policiais precisam saber para se preparar mental e fisicamente para e sobreviver a um tiroteio”, destacam-se quatro dimensões que caracterizam a sobrevivência policial em sentido amplo:
- A sobrevivência física, razão principal de todo o investimento que o estado deve realizar para que a vida dos operadores de segurança pública seja plenamente preservada. Técnicas e táticas de sobrevivência e autoproteção constituem o cabedal de conhecimento que pode garantir o retorno do policial para sua casa ao final do seu turno de serviço. O bom condicionamento físico também se enumera como um fator essencial para a sobrevivência física do agente da lei;
- A sobrevivência jurídica que condiciona o policial a alinhar sua legítima defesa a todos componentes legais que não permitam a desqualificação de sua ação. Hoje em dia, uma linha do poder judiciário que enfatiza o garantismo penal tem permitido que a defesa de criminosos se sobressaia através da elaboração de teses que invalidam a ação legítima da polícia. Mais do que nunca, os critérios relacionados à legalidade, razoabilidade, necessidade e proporcionalidade devem estar presentes na justificativa e na execução do trabalho policial. A sobrevivência física do policial deve ser sucedida por sua sobrevivência nos tribunais;
- A sobrevivência moral, que implica sobreviver aos julgamentos sociais decorrentes do seu trabalho, mesmo que a ação policial se enquadre corretamente em critérios técnicos e jurídicos. Somada à grande parte da mídia tradicional, as mídias sociais se encarregam, muitas vezes, de expor o policial que se utiliza da força letal em situações críticas, e não perdem tempo em desconstruir sua legítima defesa. É o exemplo recente dos resultados dos confronto entre a polícia e criminosos, durante a Operação “Escudo”, no Estado de São Paulo, desencadeada após a morte de um policial militar por uma facção criminosa. Após a morte de vinte e sete criminosos (que optaram por confrontar as forças policiais), alas progressistas da sociedade iniciaram uma fervorosa campanha para desgastar a imagem da corporação e colocar em dúvida a credibilidade da polícia paulista face o resultado da operação.
- A sobrevivência psicológica que exige que o policial tenha condições de lidar com o stress pós-traumático de um confronto, demandando um prévio preparo psicológico de sua parte e por parte das corporações. As forças policiais devem ser dotadas de setores especializados que disponibilizem aos seus operadores o acolhimento e o acompanhamento imediato para casos em que o policial precise fazer uso da força letal. A constante atuação em eventos de crise tem sido um fator que, não raro, vem adoecendo policiais, retirando da rua excelentes profissionais que têm dificuldade em lidar com o fato de terem utilizado sua arma de fogo e corrido risco de morte, mesmo em situações de legítima defesa.
Em Roraima, no ano de 2019, a Academia de Polícia Integrada “Coronel Santiago” idealizou e executou as primeiras edições do Curso de Conduta de Sobrevivência e Autoproteção Policial (COSAP), um curso que escolheu como público-alvo todos os operadores do sistema de segurança pública do Estado de Roraima. Assim, Policiais Militares, Guardas Civis Municipais, Policiais Civis, Policiais Penais, Policiais Federais e Policiais Rodoviários Federais, além de militares das Forças Armadas e do Corpo de Bombeiros Militar, puderam conhecer e aprimorar técnicas de sobrevivência voltadas para si e seus familiares, relativas à segurança de suas rotinas. Desde então, mais de trezentos operadores de segurança pública se capacitaram, mostrando-se em condições de não se incorporarem às estatísticas de vitimização policial brasileira.
O senso comum afirma, erroneamente, que ser policial em cidades com índices de criminalidade menos assustadores é uma tarefa mais fácil, e que difícil mesmo é ser policial no Rio de Janeiro ou em cidades que possuam comunidades dominadas pelo crime organizado. Quem dera assim fosse, pois onde quer que esteja o policial ele sempre terá um alvo em suas costas. E precisará estar preparado juridicamente, tecnicamente e psicologicamente para se preservar vivo em todos esses aspectos.
Dos “bobbies” ingleses, passando pelos policiais comunitários dos kobans japoneses, e chegando aos “brigadianos” dos pampas gaúchos, todos os pacificadores sociais, infelizmente, continuarão a representar um trunfo para o criminoso que ceifar suas vidas de forma cruel e covarde.
*Coronel da Polícia Militar