Mapeamento e afirmação da cultura roraimense 1: o papel do estado

Mapeamento e afirmação da cultura roraimense 1: o papel do estado

Éder Santos

Jefferson Dias (Mestre Biriba)

A cultura artística em Roraima tem a virtude de ser o resultado do encontro de diversos povos, localizados neste espaço territorial rico de belezas naturais, saberes, sabores, encantos e histórias. A pluralidade étnica-racial, a dimensão caribenha, os fenômenos migratórios recentes, a chegada de nordestinos e sulistas no extremo norte brasileiro, o viver ribeirinho, urbano e rural são elementos que fazem com que Roraima possua uma singularidade expressa na sublime beleza de uma brasilidade amazônica fronteiriça.     

O Panorama Cultural de Roraima (Editora de UFRR, 2016) é, possivelmente, uma das principais iniciativas de mapeamento em gestão da cultura publicada no estado, resultado do curso de Extensão em Gestão Cultural, organizado pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), com o apoio da Secretaria de Articulação Institucional do Ministério da Cultura (MinC). Trata-se de uma proposta de diagnóstico das ações culturais do Estado, seus equipamento e ações. Um robusto trabalho de pesquisa coordenado pela jornalista e gestora cultural, Selmar Almeida e pelo professor doutor Flávio Corsini, do Centro de Educação da UFRR.

A ação marca a forte atuação do MinC que, à época, financiou cursos de formação voltados a gestores culturais, subsidiando o trabalho dos agentes culturais na constituição de planos locais e na inserção dos municípios e estados no Sistema Nacional de Cultura (SNC). Foi por meio da referida publicação que dezenas de artistas, gestores culturais, pesquisadores e voluntários, divididos em grupos de trabalho, pesquisaram aspectos da  cultura de cada município. Importante ressaltar que a gestão cultural no estado de Roraima é atribuição da Secretaria de Estado de Cultura de Roraima (SECULT/RR), pasta criada pela Lei n.º 890 de 23 de janeiro de 2013, que conta com um dos menores orçamentos dentre as unidades estaduais e número reduzido de expertise em sua estrutura funcional.

Ainda assim, percebe-se no diagnóstico produzido a potência cultural que existe e resiste em nosso Estado. Diz a publicação que a “música roraimense é diversificada, vai do erudito ao popular; a dança e o teatro são manifestações que vêm crescendo bastante em Roraima, assim como as manifestações folclóricas – folguedos amazônicos de inspiração indígena, grupos de dança do boi e quadrilhas de São João e Cangaceiros”. Os nordestinos e outros brasileiros que chegaram no Estado trouxeram sua cultura que somou-se às tradições locais e assim, nessa dinâmica, a cultura de Roraima foi ganhando novos contornos. Diz o texto que “a tradição menos modificada pela migração e miscigenação dos povos foi o artesanato indígena, que se tornou um traço de resistência. A cultura roraimense é, portanto, básica e predominantemente indígena e nordestina”.

No estudo, foram identificados importantes núcleos culturais diversificados a partir de linguagens artísticas e espaços culturais, além de um mapeamento da cultura em todos os municípios. A tradição nordestina e gaúcha está presente em Roraima. Eventos religiosos, como o Círio de Nazaré também. As produções audiovisuais ganham força e estão circulando em várias partes do mundo, com destaque para os países europeus que tem exibido e premiado filmes de cineastas de Roraima. Acrescenta-se nessa lista a consolidação do importante trabalho das artes cênicas, artes visuais, gospel, Hip Hop, comunidade LGBTQIA+, patrimônio cultural e dos indígenas no contexto urbano. Entretanto, há dois fenômenos que merecem destaque pela capacidade de organização e classificação proveniente de seus próprios integrantes: a cultura dos Povos de Terreiro e a capoeira.

Entre os anos de 2016 e 2019, enquanto políticas públicas, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), buscou-se desenvolver ações de mapeamento para os terreiros de matriz africana ou afro-brasileira e para a capoeira, uma ferramenta de reconhecimento e valorização. Em relação ao mapeamento dos terreiros em Boa Vista (RR), a primeira fase iniciou no mês de abril de 2017 e finalizou em 2018 com um total de 14 terreiros mapeados na capital. Cabe frisar que todos os agendamentos se deram com participação da diretoria da Associação de umbanda, ameríndios e cultos afro-brasileiros de Roraima (ASUAER), responsável por guiar o pesquisador (Jefferson Dias), juntamente com técnicos do IPHAN/RR aos locais destinados. A ASUAER atualmente denomina-se Federação de umbanda, cultos afros religiosos e ameríndios de Roraima (FUCABERR). Nela estão catalogados 56 terreiros de matriz africana somente na capital, entre Candomblé e Umbanda.

O mapeamento dos grupos de capoeira, se deu no campo da pesquisa no mesmo período, entre 2016 e 2019. A ação foi desenvolvida a partir das políticas de salvaguarda da capoeira em todo Brasil disseminadas pelo IPHAN. Em Roraima, foi realizado pelo Comitê Gestor da Salvaguarda da Capoeira de Roraima, composto por membros dos grupos de capoeira, sociedade civil e instituições públicas. Segundo resultado do projeto de mapeamento da capoeira realizado pelo Comitê Gestor de Salvaguarda da capoeira de Roraima, estima-se que somente na capital Boa Vista, existem mais de 20 grupos de capoeira, um coletivo de profissionais, formado por mestres, contramestres, professores, instrutores e monitores. Cada grupo, tem mais de uma filial, ou seja, núcleo de capoeira instalado nos bairros da capital e no interior. Além disso, há diversos outros projetos sociais que tem como principal ferramenta de transformação a capoeira voltados para as crianças, jovens e adultos, a saber: Instituto Biriba; Casa da Capoeira, Galpão Cultural; Toca do Tatu, Blinda Vidas, Espaço da Capoeira; Instituto Geração Missionária e muitos outros.

Cabe salientar, que instrumentos como o do mapeamento, por exemplo, utilizados para o reconhecimento dos terreiros de matriz africana ou afro-brasileira e para a capoeira deveriam ser uma política de estado no âmbito municipal e estadual em Roraima, que alcançassem as outras linguagens culturais. A questão é: Como conhecer um território cultural em Roraima, sendo que não há o reconhecimento? O papel do estado nesse sentido, deveria empregar políticas culturais efetivas de reconhecimento da nossa diversidade cultural. O instrumento do mapeamento poderia ser uma política institucional. Reconhecer para identificar. Reconhecer para valorizar. Por isso, observa-se a importância de se reconhecer um território cultural.

Com base no mapeamento dos grupos de capoeira em Roraima, calcula-se que diretamente e indiretamente, somente nos grupos, filiais e ONGs, durante todo o ano, circulam um público que envolvem alunos, familiares, membros da comunidade da qual estão inseridos, artesãos, rede hoteleira, gráficas e etc, uma economia criativa de grande proporção. Cabe frisar, que, cada grupo de capoeira, promove durante todo o ano, pelo menos, de dois a três grandes eventos que servem para o processo continuo de ensino e aprendizagem no que diz respeito a formação de novos alunos e profissionais, ampliando significantemente a quantidade de pessoas que acessam todo o patrimônio cultural que está relacionado com a prática da capoeira, chegando a um alcance de mais de vinte mil pessoas anualmente.

De outra forma, nos terreiros de matriz africana ou afro-brasileira, o modelo é similar: no mínimo três grandes festas são realizadas pelo povo de santo na capital, Boa Vista. Um número expressivo de adeptos da religião, simpatizantes, costureiras entre tantos outros. Vale ressaltar que a partir desse primeiro mapeamento dos terreiros, outra obra importante publicada pelo IPHAN é: “Fé e Resistência: Religiões de Matrizes Africana e Afro-Brasileiras em Boa Vista/RR”, fruto do projeto “História e Memória: produção do inventário participativo das comunidades de religiosidade de matriz africana e afro-brasileira”.

Em Roraima, a nossa diversidade cultural ultrapassa fronteiras. Não conhecemos o seu alcance. Neste sentido, o estado deve buscar desenvolver políticas com o objetivo de alcançar a cultura como um todo e seus fazedores (as). De certo, que o papel do estado, deveria ser, o de desenvolver políticas culturais, logicamente, com a contribuição dos coletivos culturais enquanto sociedade civil organizada. Somente assim, poderíamos reconhecer o nosso território e criar políticas de valorização. Para finalizar, faz-se necessário lembrar que o papel do estado e dos municípios deve passar pelo cumprimento das diretrizes do Sistema Nacional de Cultura (SNC) que prevê a valorização dessa diversidade de agentes culturais. Assim, teremos cada vez mais nossa cultura sendo vitrine de uma Amazônia importante para o Brasil e para o mundo.  “Iê! Viva meu Deus! Iê, viva meu mestre quem me ensinou!”, já diz o capoeirista agachado ao pé do berimbau.

Éder Santos é presidente da Associação de Cinema de Roraima, jornalista, sociólogo, doutorando em Geografia pela UNIR, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Modos de Vidas e Culturas Amazônicas (UNIR), da Mostra Internacional do Cinema Negro (SP) e do Comitê Pró-Cultura Roraima.

Jeferson Dias – (Biriba), é mestre em Preservação do Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN; Especialista em Filosofia da Religião (UERR), Pós-graduado em docência do nível Superior e Bacharel em Direito. Membro do grupo de Estudo e Pesquisas em Africanidades e Minorias Sociais (UFRR). Contramestre de Capoeira pelo Grupo Senzala e Fundador do projeto social Instituto Biriba. Membro do Comitê Gestor da salvaguarda da Capoeira de Roraima e Membro do Comitê Pró-Cultura Roraima. Foi Presidente da Federação Roraimense de Capoeira (2019 à 2022). Foi professor de Direito Penal, Ética, Bioética e Legislação Trabalhista na instituição Ser Educacional.

Panorama Cultural de Roraima 2016

Capoeira em Roraima – Mapeamento dos grupos. IPHAN-RR. 2019.

http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/CapoeiraRR_Mapeamento_dos_grupos.pdf