OPINIÃO

A cilada do palhaço

Marco Antonio Spinelli*

Durante as filmagens de “A Lista de Schindler”, Steven Spielberg, que ganharia o seu Oscar com esse filme, terminava o dia comido de angústia: era como presenciar as atrocidades dos Campos de Concentração e o massacre de seu povo ao vivo e em Tempo Real. Sua saída para conseguir encerrar o dia e se preparar para mais outro dia dentro do Campo de Concentração era ligar para seu amigo, Robin Williams, e dar boas gargalhadas com a sua capacidade de disparar piadas como uma metralhadora. Robin era seu fornecedor de “Alívio Cômico”, uma forma de terminar um filme que ele imaginava um fracasso de bilheteria. Sabemos hoje que é dos maiores, senão o maior, de seus filmes.

Há pouco tempo recebemos a notícia da morte prematura de um grande comediante de sua geração: Mathew Perry, o Chandler de “Friends”, que se afogou na própria banheira, provavelmente sob efeito de substâncias ou depois de um mal súbito. Mathew viveu, como muitos comediantes, o paradoxo de saber extrair a graça das pequenas coisas do cotidiano e divertir a todos com seu fabuloso talento, tendo em sua vida pessoal períodos de profundas trevas, com Depressões graves e uso de álcool e várias drogas, o que determinou muitas internações, tratamentos e tentativas de reabilitação, mas sempre com a característica crônica e recorrente desses transtornos levando a muito sofrimento dos pacientes e de seus seres amados. Ele sempre foi muito aberto ao expor publicamente a sua doença, para trazer luz ao problema e benefício aos que partilham desse sofrimento. O seu livro autobiográfico: “Amigos, Amantes e A Grande Coisa Terrível”, que eu não li, falava sobre essa montanha russa de prazer e de mergulhos nas trevas que sua condição determinava. Sou capaz de arriscar que esses mergulhos no Inferno estavam relacionados às mudanças de humor, angústia e processos depressivos, que acabavam gerando as recaídas. Essa é “Aquela Coisa Terrível”.

Robin Williams também encerrou sua vida tragicamente, pondo fim à própria vida na vigência de mais uma depressão gravíssima. Ele nos alegrou e marcou com personagens cômicos inesquecíveis, em filmes como “Patch Adams”, “Uma Babá quase Perfeita” e tantos outros que lembramos no sabor de um sorriso ou uma gargalhada aberta e fora de hora. Mas o seu personagem que mais me marcou foi do psicanalista do filme “Gênio Indomável”, Dr Sean MacGuire.

Poucas vezes pude ver alguém transmitir tanta tristeza em seu olhar como esse e outros personagens dramáticos de Robin. Seu personagem está preso em um profundo processo de luto, pela morte de sua esposa, o amor de sua vida. Vive uma vida reclusa, atende poucos pacientes e dá aulas de Psicanálise para poucos alunos. Seu embate com o jovem prodígio Will Hunting, papel escrito e vivido por Matt Damon, é uma pequena obra-prima de nosso tempo. A capacidade de Robin Williams de traduzir a tristeza, assim como grandes comediantes como Jerry Lewis, Chico Anísio e Jim Carrey, traz em comum o histórico de grandes e profundos quadros depressivos e da Doença Bipolar em alguns casos desses e outros comediantes. Isso significa que a doença e o talento andam juntos nesse mundo? Em muitos casos, sim. Estudos mostram que comediantes tem muito mais alterações de humor, depressões e risco de uso e abuso de drogas que a população em geral. Você corre mais risco psiquiátrico sendo um comediante do que sendo um contador. Nada contra nenhuma das duas profissões. Mas é grande a carga de estresse de quem esconde a própria tristeza com seu talento, ou busca ser amado agradando e divertindo as pessoas.

Essa é a cilada do palhaço: ao mesmo tempo que ajuda as pessoas a transcender a própria angústia, como Robin Williams arrancando gargalhadas de Stephen Spielberg, no final do dia, é como se ficassem presos dentro dessa Persona alegre, sem espaço para a própria dor.

Uma das primeiras lições que ofereço a meus alunos é a Lei de Spinelli número 13 (os números são alheatórios): “Ou você dá conta da sua Ferida, ou a Ferida dá conta de você”. Simples (ou não tão simples) assim.

Jim Carrey, que também falou e ajudou muitas pessoas com os relatos de suas Depressões, pegou um trecho de um escritor que fez a brincadeira com a palavra “depressed”(deprimido) para “deep rest”(descanso profundo). Nossa maior ânsia na vida é receber\dar amor e ser importante para as pessoas. A cilada do palhaço é achar que a sua valência está toda relacionada com sua face alegre. E nunca cuidar da ferida que fica debaixo da sua máscara. Essa necessidade compulsiva de ser feliz e divertir as pessoas acaba terminando em um cansaço profundo. E sua última cena não evoca em nós nenhum riso, mas algumas lágrimas de saudade.

*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação younguiano e autor do livro Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa