OPINIÃO

A nascença de um ser medonho: kanaimé

Parte I

Sebastião Pereira do Nascimento

No imaginário indígena, o kanaimé é definido como uma entidade mórbida, perversa e abominável. Estigma de uma criatura causadora de infortúnios, onde entre os indígenas o próprio nome já evidencia uma manifestação de pavor, visto que o ataque do kanaimé sempre é precedido por atitude surpresa e praticado com requinte de crueldade. Uma figura muito assustadora para os povos indígenas.

Para muitos, o kanaimé é semelhante à figura do karaiwa (homem branco, não indígena) celerado, aquele que mata o outro, ainda que seja apenas por maldade ou vingança. Diante dessas motivações, tanto o kanaimé como o facínora urbano são pessoas possessas, que agem do mesmo modus operandi, sendo levadas pela insaciável vontade de ser um humano aberrante e vil.

Porém, em outro mundo que não seja dos povos indígenas, o kanaimé, antes do contato com o povo “civilizado”, era um ser no estado natural, pacificador e sem maldade. Não fazia nada de maneira premeditada, sempre se antecipava às coisas ensaiadas pela natureza. Mas, com o passar dos tempos, cansado do tédio de sua vida e da rotina de seu povo, decidiu sair de sua terra para a terra do karaiwa, ou seja, para a terra “civilizada”, onde ele acreditava que a vida poderia ser melhor e poderia aprender coisas novas para levar para sua gente.

Diante dessa decisão embriagante, o kanaimé partiu para a terra do karaiwa. E ao chegar no berço dos karaiwa, logo se deslumbrou com tudo que viu: carros, motos, bicicletas, aviões, mercados, feiras, restaurantes, lanchonetes, lojas e vitrines, farmácias, hospitais, hospedarias, prédios, edifícios, ruas, avenidas, luzes e gente. Muita gente.

Frente a tantas coisas “novas”, o kanaimé desembestou proferir elogios ao mundo moderno, dizendo:

 — Que coisa maravilhosa! Veja o quanto o povo da minha terra é tão atrasado. Tão sem noção das coisas do mundo “civilizado”. Que coisa absurda… vivemos no mesmo mundo, mas na minha terra não há nada do que eu estou vendo aqui. É incrível!

— E os parentes — continua falando o kanaimé — ainda dizem que as pessoas da cidade não evoluíram diante da natureza. Lá os meus parentes têm a mania de dizer que a sociedade que não evolui fica para trás mediante as transformações do mundo. Mas como se é aqui que as coisas avançadas acontecem. Olha lá tantas coisas maravilhosas que eu estou vendo.

Ao vislumbrar-se com tudo que viu à sua frente, o kanaimé logo imaginou que todas as coisas ali estavam disponíveis para todo mundo de maneira gratuita. Assim, começava a pensar que na terra do karaiwa tudo era fácil. No sentido de pertencimento, ele acreditava que as coisas da terra do branco fosse igual como na sua maloca, onde tudo pertence a todos de forma incondicional.

Com esse pensamento e em estado de êxtase diante do mundo desconhecido, o kanaimé passou ter seus primeiros contatos com as armadilhas humanas que ele chamava de coisas maravilhosas. E assim, conhecendo as coisas do karaiwa, ele deu asas a sua imaginação:

— Uma das primeiras coisas que me chamou atenção aqui na terra civilizada é a polícia. Que coisa maravilhosa! Veja ali. Mais adiante tem um local que eles chamam de quartel general. Lá tem muitos karaiwa, todos vestidos iguais e fortemente armados, bem diferente dos meus parentes quando se preparam para uma caçada na floresta. Aqui os aparatos de defesa e ataque são muito mais poderosos, um troço mais rápido do que as nossas antiquadas flechas de talo de palmeira com as pontas de osso.

— Olha os transportes deles! — continuou o kanaimé — Lá na minha terra, para a gente ir de um lugar para outro, temos que ir caminhando pela floresta ou pelo lavrado. Lá a gente sobe serra, desce serra e acaba ficando muito cansado. Aqui não, olha tantas coisas que eles chamam de carros e motocicletas. Que maravilha! Olha como eles andam velozes! E aquele bicho ali que eles chamam de trem parece mais uma cobra de ferro. Pelo visto, parece até que ela engoliu um feixe de gente e agora está vomitando. Bem feito. Quem manda comer demais. Parece até que tem o olho maior do que a barriga.

Continuando a incursão pela terra do karaiwa, o kanaimé se endoideceu com as novidades:

— Olha lá que lojas bonitas. Tem tudo que a gente quer. Roupas, calçados, cintos e joias… muitas coisas maravilhosas. Ah, se houvesse lojas assim lá na minha terra, meu povo andava bem elegante e refinado. Seria muito bom se meus parentes pudessem desfrutar dessas coisas do mundo moderno. Que maravilha seria!

Desse modo, o kanaimé, admirado com a natureza corpórea do karaiwa, ficou cada vez mais aturdido:

— Veja! Tanta coisa tem para comer. Lá na minha maloca é completamente diferente. Se a pessoa quiser comer alguma coisa, tem que plantar, pescar ou caçar. Aqui não. Tudo está à disposição da gente.

 — E ali naquela casa tem veneno para matar todas as pragas da lavoura do karaiwa. Que maravilha! Lá na minha terra, se existisse doença na roça, nós não teríamos veneno para matar as pragas. As doenças iam comer toda a nossa plantação… imagine como seria o sacrifício. Logo lá que a nossa roça é tão pequena, diferente da roça do karaiwa que é muito grande… que coisa maravilhosa é a roça dos civilizados.

— Olha, aquele barracão que eles chamam de farmácia tá cheio de medicamentos para tratar todas as doenças do karaiwa. Lá na minha terra quase não tem doenças, mas se tivesse ia dar muito trabalho para curar porque não teria remédio. Mesmo assim, quando aparece alguma doença de índio, o parente tem que buscar o remédio lá na floresta (cascas de pau, raízes, folhas e até “leite” de árvores) e ainda por cima tem que preparar o remédio. É uma coisa muito sofredora para meus parentes. Aqui não, na terra do karaiwa os remédios já vêm pronto para a gente usar. Que maravilha!

— Lá na frente tem outro barracão grande que eles chamam de hospital. Lá o pajé do karaiwa trata todas as pessoas quando estão doentes ou quando chegam vítimas de acidentes ou assassinatos. Que coisa boa é a pessoa ser tratada tão prontamente como fazem aqui… imagina se na minha terra tivesse todas essas morbidezas que tem aqui? De certeza meus parentes logo iam morrer, pois lá não há hospital. Aqui o pajé do branco é muito prestativo, ele trata todo mundo com muito carinho e eficiência. Lá na minha maloca não, o pajé já está muito velho e não tem mais forças para curar nem mesmo as pequenas feridas.

No mundo do karaiwa, o kanaimé, verdadeiramente admirado com tudo que encontrou, com seu jeito ingênuo, logo ia aplaudindo as coisas do branco. Não obstante, depreciava as riquezas corpóreas e incorpóreas de sua gente. Para ele, a natureza material da sua terra, assim como os costumes, hábitos e a cultura de seu povo, já não tinham mais valores. Razão pela qual passou exaltar com imoderação as coisas do karaiwa. Uma valorização sustentada pela ideia erronia de que as coisas modernas que ia vivenciando eram demasiadamente melhores e mais bonitas do que as coisas do seu povo. E diante dessa alucinação, o kanaimé dividia a sua realidade em dois mundos: o mundo “miserável” (que considerava o mundo de seus parentes afundados no ostracismo e no atraso) e o mundo “civilizado” (que pensava ser do acolhimento e da evolução).

Na terra do kanaimé, ele alegava que seus parentes viviam isolados de tudo e de todos e carentes das coisas boas que o mundo moderno oferecia. Por outro lado, na terra do karaiwa, o kanaimé julgava que o homem “civilizado” vivia em permanente conforto, prosperidade e em comunhão, algo controverso que ele chamou também de mundo “maravilhoso”.

Diante dessa ilusão, o kanaimé, já bastante apatetado, contemplava o mundo da aparência, dizendo:

— Era esse mesmo o mundo que eu queria para mim. — dizia o kanaimé — Nunca pensei que tivesse coisas tão estupendas no mundo do karaiwa. Que maravilha! Agora vejo realmente como meus parentes são tolos. Eles não têm noção do que acontece aqui. Eles não sabem o que estão perdendo. Lá eles vivem como na idade da pedra. Não têm casa bonita, não têm carro, não têm lojas, não têm bares e restaurantes, não têm coisas prontas, não têm nada de conforto. Mas deixa para lá. O que eu quero agora é esquecer a vida retrógrada dos meus parentes e viver nesse mundo contagiante.

Com essa ilusão, o kanaimé já começou a pensar como o homem urbano. O que ele não sabia é que no mundo do karaiwa predomina um sistema capitalista que impera a propriedade privada, a busca constante pelo lucro e o acúmulo de riqueza material. Coisas que, via de regra, se manifestam da forma mais egoísta e selvagem possível.

Mas, diante de todas essas estranhezas, o kanaimé, inocentemente, logo passou arquitetar o seu plano de vida na terra “civilizada”:

— Primeiro… — dizia ele — vou dar um passeio nessa cobra grande que os karaiwa chamam de trem. Depois vou em algum desses barracões grandes que eles chamam de shopping. Vou pegar algumas mudas de roupa e uns dois pares de sapatos para ficar elegante igualmente ao karaiwa.

— Depois vou para uma dessas casas de comidas que eles chamam de restaurante. Vou comer tudo que for possível. Hoje vou tirar a barriga da miséria. Depois vou pegar um carro (um desses carros de luxo) e vou para aquele casarão que eles chamam de hotel. Vou descansar. Afinal, como qualquer kanaimé, eu também sou filho de deus… amanhã vou conhecer melhor esse mundo moderno e aproveitar tudo que tenho de direito aqui na terra do karaiwa.

Assim, o kanaimé, desconhecendo a realidade da terra “civilizada”, pegou o primeiro trem, mas sem o bilhete de acesso, logo foi interpelado pelo cobrador, que o advertiu de forma brutal. Depois chamou a polícia. Quando a polícia chegou, pensou que o kanaimé fosse um meliante e cuidou de robustecer a violência.

O que o kanaimé não imaginava é que na terra do karaiwa, qualquer tipo de transporte coletivo, e público, é preciso pagar para usufruir. Quando gratuito, é apenas para aqueles que têm a concessão permitida na forma da lei. Mesmo assim, o usuário deve se enquadrar diante do cobrador.

Após esse episódio e ainda atordoado pela pancadaria, o kanaimé resolveu executar seu próximo plano: pegar “suas” roupas novas e sapatos em algum shopping. Entrou na primeira loja de confecção e diante do comportamento incomum, o atendente ficou apavorado. Pensando tratar-se de um indivíduo mal-intencionado (vítima da malquerença da sociedade), chamou a polícia. Quando a polícia chegou, supondo que fosse mais um meliante, tratou de agredir violentamente o kanaimé.

O que o kanaimé não imaginava é que na terra do karaiwa, a aquisição de quaisquer produtos expostos no comércio só devem ser obtidos mediante o pagamento. Regra do toma lá dá cá, estabelecida pelo sistema capitalista, que visa apenas o lucro e a proteção da propriedade privada.

Continua…

Filósofo, consultor ambiental e escritor – autor de diversos livros, dentre eles “Recado aos Humanos”, publicado pela editora CRV.