OPINIÃO

A nascença de um ser medonho: kanaimé

Parte II

Sebastião Pereira do Nascimento

Depois de melhorar da última pancadaria, o kanaimé, com muita fome, entrou num restaurante e logo foi pegando algo para comer. O pela situação lastimável que se encontrava, de imediato chamou atenção das pessoas presentes, fazendo com que o atendente do restaurante acionou a polícia. Ao chegar no local, a polícia pensando se tratar de um meliante e sem perguntar nada, desferiu no kanaimé chutes e cacetadas. Depois tirou do restaurante e o abandonou em local ermo.

O que o kanaimé não imaginava é que na terra do karaiwa, o consumo de comida feito em qualquer restaurante tem que ser pago. Na terra civilizada nem toda mesa posta é sinal de fartura. Para alguns, sim, mas para a maioria das pessoas pode ser sinal de fome e barriga vazia.

 Ainda na ânsia de usufruir de alguma coisa na terra do karaiwa, o kanaimé, após se recuperar um pouco da terceira surra, foi à farmácia buscar tratamento para suas dores. Ao entrar na farmácia foi logo pedindo um medicamento, mas foi mal acolhido pelo atendente da farmácia, que o tratou com desprezo, além de chamar a polícia. Quando a polícia chegou, deu de encontro com o kanaimé e pensando ser outro meliante, desceu-lhe muitas bordoadas, deixando-o completamente desnorteado.

O que o kanaimé não imaginava é que na terra do karaiwa, a cura das doenças humanas não é feita nas farmácias, visto que o atendente da farmácia não tem obrigação de conceder nenhum tratamento, muito menos fornecer remédios se o usuário não fizer o pagamento correspondente ao preço do medicamento.

Permanecendo com a intenção de aproveitar das coisas “maravilhosas” que descobriu na terra “civilizada”, tão logo se restabeleceu da quarta pancadaria, o kanaimé resolveu ir para o hotel. E na recepção pediu um aposento, pois estava muito fatigado e queria descansar. Porém, pela situação em que se encontrava, o atendente de imediato barrou sua entrada e chamou a polícia. Quando a polícia chegou, pensando se tratar de um “meliante”, espancou violentamente, deixando-o quase desacordado.

O que o kanaimé não imaginava é que na terra dos karaiwa, os hotéis ou pousadas exigem critérios para concessão de hospedagem, que pode ser por meio de reserva antecipada ou pagamento no ato da hospedagem. E por motivo óbvio, o kanaimé não se enquadrava em nenhuma dessas situações.

Quanto aos propósitos planejados pelo kanaimé, o único lugar que não cogitava ir era ao hospital. Mas como se encontrava bastante debilitado pela violência praticada pelos karaiwa, resolveu ir a um hospital público, onde logo na entrada já foi hostilizado. Ainda assim, o kanaimé disse precisar de tratamento. Mas o atendente do hospital respondeu que não tinha como fazer nada a não ser chamar a polícia. Quando a polícia chegou e reconheceu que se tratava do mesmo meliante, passou interrogar o kanaimé e descobriu que ele não se enquadrava em nenhum dos identificadores de um ser civilizado: nem moradia, nem família, nem frequência escolar, nem atestado de trabalho, nem coisa nenhuma. Então, o que restou foi levar para casa de detenção.

O que kanaimé não imaginava é que na terra do karaiwa, o hospital público não funciona de modo eficiente, nem mesmo o atendimento básico de saúde. Até mesmo o pessoal do pronto atendimento faz a escolha de atender ou não os usuários. E como critério de exclusão, as pessoas miseráveis, assim como o kanaimé.

Levado para a casa de detenção, logo na entrada, o kanaimé tomou o primeiro susto com o barulho da trava do portão se abrindo e fechando. A partir de então, já nos recintos mórbidos da prisão, o kanaimé foi recebido de maneira ressabiada pelos demais detentos. Mas, ao perceberem que se tratava apenas de um simples meliante, como de praxe, fizeram-lhe tenebrosas recomendações e deram-lhe algumas estocadas, deixando-o desatinado.

O que o kanaimé não imaginava é que na terra do karaiwa, a casa de detenção é algo que concentra os celerados e os humanos menos favorecidos, na maioria, todos sujeitos às infames penas. Assim, a casa de detenção da terra civilizada nada mais é do que um aparelho de segregação que leva o indivíduo a perder o contato social. Percebendo isso, o kanaimé começou vislumbrar que mesmo fora da prisão, ele já era um sujeito segregado e violentado pelos karaiwa devido a sua categoria social. E o sistema prisional, verdadeiro depósito humano, só o torna mais marginalizado.

Na casa de detenção, concentram-se os indivíduos privados de liberdade, aqueles considerados ofensores da ordem pública, tenham ou não feito algo agravante. Mas bastam ser julgados culpados, lá vão para a detenção. Lá não existe nada de advertir sobre os erros humanos e muito menos boas orientações para possível regresso ao convívio social. O sistema prisional nada mais é do que um autêntico lugar de negação do ser humano, um lugar de isolamento penitencial e de alienação do indivíduo.

No sistema prisional dos karaiwa, os apenados terminam por viver em recintos superlotados, mórbidos, com práticas de torturas e outras violações humanas. Um lugar insalubre, infestado de insetos e ratos, sem água potável e sem banho. Na casa de detenção da terra “civilizada”, os prisioneiros consomem restos de alimentos putrefatos e fétidos. As latrinas estão sempre sortidas de dejetos: fezes e urina que se desfazem entre os presos.

No cárcere, existem códigos de condutas onde os apenados são extorquidos, ameaçados e privados de tudo, menos da violência. Muitos se submetem aos caprichos dos outros em troca de vantagens ilícitas, proteção, dívidas de drogas ou objetos de primeiras necessidades. Visitas amorosas podem ser concedidas apenas aos presos com “maior poder” de barganha. Para as mulheres detentas, o mesmo procedimento. As facções fazem acordos, inclusive com os chefes dos presídios, que cedem “facilidades” em troca de falsa pacificação e outras regalias prisionais. 

As facções arrecadam dinheiro com os detentos. Quando o sujeito entra na prisão, ele passa ser refém dos “mais fortes” — com ameaças a seus familiares —, para compulsoriamente “pagar” uma “cota”, a qual varia conforme o padrão de vida de cada um. Quando não, esse detento acaba virando “serviçal”, tendo que lavar roupa, fazer faxina, esconder arma, passar drogas e outras coisas mais. Nos dias de calor intenso, o “serviçal”, ou seja, o detento submetido à vontade do outro, tem que ficar abanando o “chefe” ou “protetor” durante o tempo em que eles acharem conveniente.

Assim é a casa prisional do karaiwa. Uma casa de tortura, um campo de concentração, um pavilhão de atrocidades, um recinto de degradação, uma escola de má formação, onde os mais fracos são explorados e submetidos a todo tipo de perversão: da confiscação da consciência à desigualdade ante o castigo. Um espaço que vitimiza as pessoas mais desgraçadas. Um sistema que foge do controle humano e ameaça a própria existência do homem. Lá as pessoas são depositadas para morrer — morrer de morte violenta. Um lugar sombrio onde o Kanaimé viveu um tempo, sujeitando-se as regras do cárcere.

A casa de detenção da terra “civilizada” faz a pessoa perder a sua humanidade e ser prisioneiro do inferno. Foi nesse lugar que o kanaimé percebeu que estava num verdadeiro tormento. Lá ele foi punido, ainda que sem merecer, e levado ao purgatório para se redimir diante de uma infinita escuridão — embora sem entender que tipo de delito havia cometido. Na clausura o kanaimé aprendeu coisas muito ruins e até se deu ao luxo de agir conforme o modus vivendi do seu “chefe”, um dos infames governantes do inferno.

Portanto, o kanaimé, descendente de um povo constituído da mais pura essência humana, passou por uma alienação mental desde a sua chegada à terra dos karaiwa. Por meio de atos involuntários, sofreu uma súbita desordem do comportamento, no momento em que insurgiu contra a ordem social posta por uma sociedade que até então a considerava evoluída. Logo, passou de uma vida virtuosa para uma vida viciada, tal como é a vida deteriorada das pessoas não civilizadas.

Ainda que seja pelo processo de osmose, o kanaimé, ao longo do tempo, na casa de detenção, aprendeu o lado desumano do homem. Para sua própria sobrevivência foi reduzido a nada, visto que na terra “civilizada” um detento está sempre sujeito a situações incivilizadas. Coisas adulteradas que alimentam almas perdidas. Algo do tipo sangue por sangue e olho por olho, onde a “pena de morte” é visceral. Na casa de detenção do karaiwa, o encarceramento em massa sustenta um cenário pandemônico, onde poucos mandam e muitos são obrigados a obedecer.

Desse modo, após alguns anos aprisionado, o kanaimé ficou apto a exercer fora da prisão as mais brutais habilidades que aprendeu. Apesar disso, com um resto de dignidade que lhe restava, ainda ponderou levar uma vida menos ameaçadora. Mas, fora da prisão, o kanaimé se depara mais uma vez com uma sociedade em profundo estado de selvageria e novamente sofreu avalanches de preconceito, intolerância e hostilidade. Sem nenhum acolhimento, o kanaimé foi recusado e ultrajado como antes de ir para a casa de detenção. Assim, não lhe restando mais nada a suportar e a usufruir da terra do karaiwa, sobrou-lhe apenas o sacrifício de nela subsistir, usando os meios que aprendeu no sistema prisional.

Entre permanecer numa eterna segregação e o risco iminente de morte, o kanaimé decidiu “trancar” a porta do seu infortúnio e lançar-se ao retorno de sua terra tradicional, levando consigo a derrota e a certeza de que: “O homem, que, nesta terra miserável, mora entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera” (trecho de “Versos Íntimos”, Augusto dos Anjos). Assim, o kanaimé, de volta para a sua terra, levou consigo as coisas que aprendeu com os karaiwa, tudo que foi de ruim. E, revoltado, sem capacidade de conduzir uma vida edificante, firmou desprezo por tudo e por todos.

O kanaimé, no momento em que se viu em sua própria terra, assumiu um sentimento de empoderamento e passou viver de maneira desobediente e hostil, contrariando a natureza ordeira e pacífica de sua gente, exprimindo apenas a vontade de fazer o mal a partir da intimidação e da perversidade. Ele passou a agir igualmente aos kanaimé da terra “civilizada”. Passou a hostilizar cruelmente todos os parentes que cruzassem seu caminho, até matando, ainda que as vítimas não lhe causassem nenhuma ameaça.

Assim, por resignação, quiçá por remorso ou aceitação, o kanaimé julga o seu lado mais desumano, dizendo:

— Um lado de mim é ruim, é este que vocês vêm. É tenebroso. O outro lado não posso lhes mostrar agora, senão vocês me reconhecem. E aí eu não vou mais poder saciar os meus desejos tenebrosos. Aqueles mesmos desejos desprezíveis que aprendi na terra dos homens “civilizados”. Algo que me consumiu e agora faz parte de mim.

— Da minha verdade — continua o kanaimé —, só posso dizer uma coisa, parentes. Eu tenho mesmo um lado medonho. Eu sou o diabo na pele de qualquer animal. Aprendi a ser vil e impiedoso enquanto estive na terra dos karaiwa. Lá descobri que a ignorância e a violência andam de braços dados e são praticadas impiedosamente.

Em tempo: o kanaimé tornou-se o que é para os parentes indígenas, um ser possesso, mais temido do que odiado, fruto da cegueira e da insensatez do karaiwa “civilizado”. Aquele que, por maldade ou vaidade, forja o mal e lhe dá manutenção, muitas vezes com o mais alto grau de requinte.

Consultor ambiental, filósofo e escritor. Autor de diversos livros, dentre eles “Recado aos Humanos”, publicado pela editora CRV.