OPINIÃO

Um pedido para que homens pensem em soluções que nos permitam ir e vir em segurança

Mulheres roraimenses, brasileiras, latino-americanas em geral vivem um estado ilusório de liberdade. As mais privilegiadas garantem-se nas cercas elétricas, concertinas, alarmes, carros com vidro fumê, andam sempre em companhia de um homem ou em grupo em lugares com certa vigilância recorrente. As menos favorecidas socialmente enfrentam cotidianamente o medo dentro e fora de casa, estando bem mais vulneráveis em suas casas e bairros entregues, muitas vezes, ao crime organizado que se alastra em nossa sociedade como câncer buscando metástase.

Mas a despeito de toda violência que possa vir a nos atingir, o verdadeiro direito de ir e vir (nos negado veladamente) é cada vez mais almejado em todas as classes e para que possamos viver esse direito básico, precisamos mais que nunca do empenho de toda a sociedade, especialmente dos homens, já que ainda hoje, em pleno século XXI, são os que ocupam quase todas as posições de comando da segurança pública municipal, estadual e federal, bem como quase todos os cargos da Justiça brasileira, Ministérios Públicos, Defensorias Públicas (talvez a menos desigual em gênero) entre outras instituições públicas e privadas.

Esta semana fomos atingidas com a partida trágica de Julieta, uma mulher artista que se negou viver no módus operandi patriarcal de liberdade ilusória e viajava levando seu sorriso e sua poesia alegre pelo Brasil. Imigrante venezuelana, vivendo legalmente no Brasil desde 2015, fez em Roraima e por onde passava, muitos amigos e amigas pelo carisma e humildade que lhe eram naturais. Teve a vida ceifada em circunstâncias violentas as quais não irei mencionar, já que as tórridas notícias jornalísticas nos informam sobre a dura realidade. E é para mudar essa realidade absurda, esse estado anormal de coisas que aqui escrevo, em nome de todas as mulheres que querem usufruir diariamente de ocupar espaços públicos de nossas cidades em segurança.

Bem mais do que qualquer homem, nós temos de nos privar de viver em paz, de acessar espaços naturais como praias, parques, mais que isso, nem em casa nos sentimos seguras. Não queremos ter que abdicar de desfrutar das belezas naturais do nosso estado, do nosso país, de ter uma vida normal, por medo de homens ruins, que estão prontos para nos fazer mal, tomar nossos corpos, nos roubar e ou matar, diante de nossa vulnerabilidade. Esse peso-medo em nossas vidas é normalizado. “Eu sou um homem de bem, não tenho culpa de ter gente ruim no mundo”. Entremos nas estatísticas: quem mais estupra, mata, rouba, tortura? Homens ou mulheres? A resposta parece agredir algumas figuras masculinas que querem relativizar um problema gigante bem diante de seus olhos. A violência perpetrada por homens precisa ser tratada como questão prioritária entre todos do sexo masculino. Todos que honram suas mães, filhas, irmãs, amores, amigas. Não enfrentar as causas do machismo doentio que assola o país é grave e triste para cada uma de nossas meninas e mulheres de todas as idades, classes sociais, raças e etnias. “Ah, agora tenho que pedir desculpa por ser homem?”. Tivemos o desprazer de ler esse tipo de colocação rasa diante dos debates sobre a tragédia que tirou a vida de Julieta. Não confunda ser masculino, ter uma masculinidade sadia, essa que nos atrai enquanto mulheres, com o machismo. Esse sim um problema sociocultural que induz a dominação e a exploração de um gênero sobre o outro.    

Não é certo e nem característica de uma sociedade minimamente civilizada que tenhamos de nos apoiar sempre na companhia masculina para nos sentirmos seguras diante da presença de outros homens desconhecidos. Há algo muito errado nisso tudo. Não podemos nos conformar com as estatísticas. Eu cobro abertamente aqui, assim como o fiz em vídeo que circula na internet, de todos os homens da segurança pública do meu país, todos os homens da Justiça, dos políticos e cidadãos comuns, pais, acadêmicos, artistas e afins que resolvam entre vocês esse problema de violência deliberada. Perguntem-se o porquê! Aprofundem suas conversas, saiam do futebol, da cerveja e da Fórmula 1 por um momento e debatam sobre esse estado absurdo de coisas. O cerceamento de nossa liberdade e de nossas vidas não é admissível. Viver com medo constante de uma agressão ou morte violenta ao acessar os espaços públicos de nossas cidades é sinal de uma sociedade adoecida, primitiva. Nos faz adoecer psicológica e fisicamente. Vide o número crescente de mulheres com ansiedade generalizada, depressão, pânico.

Não aceito que nos apontem como solução a possibilidade de ter uma arma. Minhas mãos não foram feitas para acessar gatilhos de morte e violência. Eu quero poder apresentar uma cidade segura para as meninas do futuro sem precisar depender da pólvora e sem derramar sangue. Que façam isso as forças treinadas e pagas para tal. Eduquem seus homens para a não violência, para o respeito. Adentrem ao universo feminino com a humildade de ouvir, entender, compreender. Acessem os estudos feministas com escuta, sem medos. Dispensem as fáceis distorções midiáticas maldosas que mentem deliberadamente sobre este movimento. Mulheres feministas também são mães, esposas dedicadas, cidadãs participativas, professoras, artistas, políticas e geralmente pessoas cheias de encanto e força. Ouçam-nos e ajam para além da proteção de suas meninas e esposas. Um dia todas nós estaremos vulneráveis, já que mulheres amam a liberdade, o passeio livre, as viagens. Não espere que a tragédia chegue em sua vida para agir. Só buscamos uma sociedade igualitária e segura na qual homens e mulheres possam desfrutar dos mesmos direitos e deveres.  

P.S. “Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas.” Audre Lorde.

Vanessa Brandão é jornalista, escritora, doutoranda em Estudos Literários pela Unesp, mestra em Letras pela UFRR, especialista em Artes Visuais, Cultura e Criação e em Assessoria de Comunicação. Membro do Grupo de Estudos Literaturas Indígenas, Africanas e Caribenhas (UFRR) e do Comitê Pró-Cultura Roraima.