Defendida por setores progressistas, a tão falada “internacionalização” da Amazônia brasileira já ocorre pelo menos há algumas décadas. Contudo, diferente do que se esperava, não vem ocorrendo por meio de políticas públicas preservacionistas, ou da ocupação racional e sustentável do território e suas potencialidades naturais. A internacionalização da Amazônia acontece por meio dos consórcios entre as organizações criminosas brasileiras e sul-americanas, a exemplo da cooperação entre facções cariocas e paulistas que, juntamente com narcotraficantes colombianos, se utilizam da rota do rio Solimões (AM) e seus afluentes para o envio da cocaína andina até os portos da região norte que abrem caminho para a Europa e para o resto do mundo. Outro exemplo desse consórcio se vê através das filiações ocorridas entre criminosos brasileiros e venezuelanos para o uso da logística de transporte de droga que entra no Brasil pela mais-que-batida rota de Pacaraima (RR).
As dificuldades naturais de transposição da floresta para o escoamento da droga e de todo o ilícito que entram no Brasil pelos países amazônicos exigem que esse consórcio criminal se viabilize através de um forte vínculo logístico entre os interessados. Essa cooperação ganha contornos de empreendimento entre as organizações criminosas e impulsiona a configuração no formato de redes de colaboração do crime organizado, onde não se fala mais em “cabeças” isolados de facções, mas de múltiplos colaboradores com funções específicas, através de um conhecimento cada vez mais compartimentado e especializado. Uma sacada empreendedora que traz como principal resultado a celeridade e a desburocratização da cadeia produtiva do crime. No contra-fluxo dessa corrente, temos as instituições que compõem o sistema de segurança pública da União e dos Estados, ainda atravancados em seus processos decisórios centralizados e imersos em suas culturas organizacionais díspares.
A crise de segurança que eclodiu no Equador há pouco mais de uma semana traz consigo temáticas caras e relevantes para a realidade criminal brasileira, além de evidenciar uma característica compartilhada entre os governos dos países sul-americanos: a falta de habilidade (ou de real interesse) em lidar com o crime organizado transnacional. Estudos recentes da ONU apontam que a produção de cocaína aumentou em 35% entre 2020 e 2021, subentendendo-se que a demanda pela droga continua alta em todo o planeta. No entanto, pouco se ouve falar em estratégias para se compreender e minimizar a demanda de consumo da droga, visto se tratar de um tema absurdamente complexo e com resultados estimados a longo prazo. Resta, assim, o imediatismo que faz com que os países recorreram às tradicionais metodologias de enfrentamento à produção e ao tráfico do entorpecente em seus mercados consumidores, repetindo modelos de repreensão ao micro e médio tráfico, numa lógica reativa e pouco eficiente do ponto-de-vista prático.
O drama equatoriano também coincide com o momento em que o Brasil questiona quais serão as prioridades de Ricardo Lewandowiski, novo ministro da Justiça e da Segurança Pública, diante da interminável escalada do crime organizado no país. Favorecidos por uma abissal fronteira de quase 17 mil quilômetros, o tráfico de drogas e o tráfico de armas continuam sendo os principais propulsores econômicos das organizações criminosas que fazem das cidades seus mercados consumidores e se utilizam dos rios e florestas como escoadouros de seus ilícitos. Por muitos anos, a conta do crime organizado era paga exclusivamente pelos governadores que se viam obrigados a triplicar seus investimentos na construção de presídios de segurança máxima e no aumento do efetivo policial. Hoje, os chefes dos poderes executivos estaduais enxergam o tamanho da culpa da fronteira no estímulo à criminalidade e cobram do governo federal soluções definitivas para essa demanda.
O receio de que o crime organizado se converta na principal ameaça ao estado brasileiro, assim como está acontecendo no Equador, ganha corpo quando passamos a identificar pontos de semelhança entre as organizações criminosas que atuam no cenário dos países amazônicos: 1) opção pela insurreição criminal por parte das organizações criminosas ao serem acuadas pelo estado, através de ameaças diretas à população civil (ataques a instituições e servidores públicos, motins em estabelecimentos prisionais, ocorrências incendiárias, etc); 2) alta penetração do crime organizado em estruturas governamentais do executivo, do legislativo e do judiciário; 3) forte capacidade de manipulação midiática para a vitimização dos criminosos e “vilanização” dos agentes encarregados pela aplicação da lei; 4) utilização de outras formas de obtenção de lucro, a exemplo da forte exploração do garimpo ilegal em áreas protegidas; 5) “mexicanização” da violência perpretada pelas organizações criminosas, com a maximização da crueldade nas execuções e acertos de contas entre facções.
Em fala atribuída ao futuro ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowiski, o mesmo teria reiterado que a atenção à Amazônia segue como prioridade para as ações do MJSP. Num momento como esse, o ministro não poderia pensar ou se manifestar de modo diferente, visto que as atividades relacionadas ao garimpo ilegal em áreas protegidas por lei “esfriaram” mas não pararam, mesmo diante do esforço empreendido pelo governo federal ao longo do ano passado em tentar minimizar os impactos dessa atividade.
Desse modo, mostrou-se claramente acertada o anúncio feito pelo do governo federal para a criação de uma “Casa de Governo” a ser instalada em Roraima com vistas a coordenar as operações na Terra Indígena Yanomami, focando principalmente no enfrentamento ao garimpo ilegal, de forma contínua e integrada por diversos órgãos da esfera federal. O acerto do anúncio reside no fato de que o garimpo ilegal na região deve ser combatido não só do ponto-de-vista das organizações criminosas. Há muito tempo que autoridades políticas e grandes empresários deixam seus rastros nesse caminho, evidenciando o uso da máquina pública e da influência em favor de seus interesses comerciais.
Espera-se que a nova equipe do MJSP possa estabelecer um alinhamento eficaz com a ponta-da-lança que opera diariamente no enfrentamento ao crime organizado das fronteiras amazônicas de modos que não sejam necessárias medidas que impactem na cidadania da população para a retomada da ordem em casos extremos, como o que se vê hoje no Equador.
É pertinente lembrar que, para que o poder público compreenda e possa enfrentar corretamente as organizações criminosas, não podem deixar de ser consideradas as nuances próprias de cada uma dessas organizações, apesar de pontuais semelhanças verificadas. Generalizar as características do crime organizado, como se ele funcionasse sempre da mesma forma em todos os ambientes, é algo temeroso quando se tem a intenção de entendê-lo e combatê-lo de forma competente. Do contrário, corre-se o risco do diagnóstico errado matar o paciente.
*Coronel da ativa da Polícia Militar de Roraima.
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