JESSÉ SOUZA

Morte de cuidadora chama a atenção para realidade vivida nos abrigos  

Agentes sócio-orientadores completam 20 anos de concursado no cargo e pedem melhores condições de trabalho (Foto: Divulgação)

Em um fim de semana marcado por tragédias, o caso da morte da cuidadora Ana Maria, de 54 anos, vítima de agressão praticada por uma interna dentro do Abrigo Feminino no bairro São Vicente, na noite de sábado, escancara uma realidade que sempre foi denunciada por agentes sócio-orientadores, mas historicamente ignorada pelas autoridades, sob omissão dos seguidos governos. A Secretaria do Trabalho e Bem-Estar Social (Setrabes) é responsável por todos os abrigos estaduais.

Colegas de trabalho de Ana Maria relataram que ela pensava em desistir do trabalho não só pela carga horária estressante imposta aos seletivados, mas pelas condições de trabalho em um local sem qualquer garantia de segurança aos servidores, onde não existe sistema de câmeras de vigilância nem a presença de policiais militares femininas, a exemplo do que ocorre no Abrigo de Maria com policiamento por 24 horas.

Depoimentos de servidores nas redes sociais mostram que, no abrigo onde ocorreu a tragédia com a cuidadora, não há suporte e estrutura adequados para as servidoras atuarem, todas mulheres, algumas de certa idade, que ficam indefesas diante das ameaças que elas recebem de internas em ataques de fúria, à mercê da própria sorte. Quando Ana Maria foi atacada não havia um carro do abrigo para prestar socorro.

A insegurança é tanta que, em outros momentos quando surgiram ameaças de motins, as servidoras foram obrigadas a trancarem as internas dentro do abrigo até a chegada da polícia, enquanto as mais exaltadas quebravam TVs, lâmpadas, móveis e ainda ameaçam quebrar o vidro dos carros das servidoras estacionados no abrigo. Quem já se atreveu a intervir entre as internas em fúria saiu lesionado, com cortes nos braços e ferimentos pelo corpo, conforme relatou outra servidora.

Ainda conforme as servidoras, não há sequer uma sala estruturada para descanso durante o revezamento dos plantões noturnos, tendo as servidoras que dormirem na área externa em colchões e redes que elas mesmas são obrigadas a levar, ficando completamente vulneráveis a todo tipo de situação. Trata-se de um problema antigo, sempre denunciado, mas nunca resolvido pelos governos.

Apesar de todos os perigos, os agentes sócio-educadores não recebem gratificação de risco de vida, o que demonstra o total descaso com a categoria. “Esse ano, completam-se 20 anos que assumimos nessa função, mas trabalhando nas piores condições com uma clientela em vulnerabilidade, que traz uma bagagem pesada [para dentro dos abrigos]”, relatou uma sócio-orientadora.

Conforme frisou, se existe policiamento em tempo integral no Abrigo de Maria, significa que existe perigo real aos servidores que trabalham nos demais abrigos, no entanto, a Setrabes ignora os riscos e nega cuidar da segurança dos servidores e servidoras da maioria dos abrigos, com exceção do Abrigo de Maria e do Centro Sócio-Educativo (CSE).

Outro fato que chama atenção no caso da morte da cuidadora é que a vítima era seletivada, cuja categoria recebe tratamento diferenciado dos concursados, trabalhando sob uma carga horária excessiva e com salários menores, mesmo executando as mesmas atividades, com as mesmas responsabilidades e submetidos aos mesmos riscos nos abrigos.

Nos últimos anos, a categoria foi obrigada a trabalhar em regime de 12×36 horas (um dia de trabalho por um dia de folga), acabando com o regime anterior de 12×60 (um dia trabalhado por dois de folga).  O caso foi parar na Justiça e, no ano passado, o juiz decidiu que fosse retomado o regime de 12×60.

No entanto, com o fim do contrato dos seletivados no fim do ano passado, os não concursados foram obrigados a cumprir novamente o regime de 12×36, apesar de a decisão judicial valer para todos, concursados e seletivados. E esse é apenas mais um dos descontentamentos da categoria, que recebe um salário menor e submetido aos mesmos riscos e responsabilidades dos concursados.

E a questão dos seletivados chama a atenção para outra situação, que é a morosidade e pouco caso do governo para realizar concurso público, o que permite que esses cargos seletivados sirvam ao expediente de indicações políticas, submetendo as pessoas a uma remuneração vexatória e trabalho exaustivo com carga horária fora da lei.

Precisou que alguém morresse para que tudo isso viesse à tona novamente, diante do silêncio de todos, principalmente dos que deveriam fiscalizar. E esta é a mesma realidade de todos os abrigos e instituições sob responsabilidades da Setrabes: Semiliberdade masculino, Semiliberdade feminino, Abrigo de Maria, Abrigo Infantil, Casa do Vovô, CSE, Abrigo Masculino, Abrigo Feminino e Casa do Imigrante.

Precisará que mais alguém morra?

*Colunista

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