Nota

Cimi alerta que Terra Yanomami continua em estado crítico com persistência do garimpo

Números, depoimentos e imagens ainda evidenciam corpos e rostos doentes, situação sanitária calamitosa e o retorno da invasão garimpeira na TI

O fórum acontecerá entre quarta (25) e sexta-feira (27) (Foto: Divulgação/Cimi)
O fórum acontecerá entre quarta (25) e sexta-feira (27) (Foto: Divulgação/Cimi)

Após um ano do início da operação do Governo Federal na Terra Indígena (TI) Yanomami com o objetivo de proteção territorial e da retomada da política de saúde, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) manifesta sua preocupação pela continuidade da situação crítica de saúde e a persistência do garimpo no território. 

No dia 20 de janeiro de 2023, o Governo Federal publicou o Decreto 11.384/23, que institui o Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento à Desassistência Sanitária das Populações em Território Yanomami. No mesmo dia, o Ministério da Saúde declarou, por meio da Portaria GM/MS nº 28, Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN).

As medidas foram adotadas após a visita do presidente Lula ao estado de Roraima, acompanhado de membros de seu novo governo e na presença de lideranças indígenas da região. Eram necessárias diante da situação extrema em que viviam os povos Yanomami e Ye’kuana dentro de seu próprio território devido à intensa presença do garimpo e seus impactos sobre as comunidades e o ambiente. Ao mesmo tempo, era uma das primeiras medidas significativas que o novo governo adotava com relação aos povos indígenas.

Na ocasião, Lula se comprometeu com a retirada do garimpo e reiterou esse compromisso no mês de março durante a Assembleia Geral dos Povos Indígenas de Roraima, realizada no Lago Caracaranã, na TI Raposa Serra do Sol. Entretanto, após um ano destas medidas, números, depoimentos de lideranças e outras pessoas, e imagens ainda evidenciam corpos e rostos de crianças doentes e desnutridas, uma situação sanitária calamitosa e o retorno da invasão garimpeira ao território.

A situação ganhou na época uma grande repercussão, mas vinha sendo denunciada de forma sistemática e documentada por organizações indígenas e aliados já nos últimos anos. A tragédia ocorrida no território nas décadas de 70 e 80, com o início da exploração e a primeira corrida do ouro, intensificou-se até o início dos anos 90. O maior conflito desse período foi o genocídio de Haximu, quando garimpeiros mataram 16 Yanomami de forma cruel e desumana. Até hoje, janeiro de 2024, parlamentares roraimenses utilizam de sua prerrogativa política para afirmar, de forma irresponsável e vil, que esse massacre não ocorreu. 

Entre 2017 e 2022, após 30 anos da homologação da TI Yanomami, a presença do garimpo aumentou significativamente com a anuência, conivência e omissão do governo de Jair Bolsonaro, que atuou propositadamente para deixar que o garimpo tomasse conta do território e instalasse um cenário de terror e morte nas comunidades. Ao mesmo tempo, a política de atenção à saúde Yanomami, que por décadas passou por dificuldades no atendimento e gestão – apesar de experiências bem sucedidas que deveriam ser tomadas como exemplos -, viveu durante o governo Bolsonaro o período de maior desmantelamento e opacidade. O atendimento era inviabilizado pela presença do garimpo e o que antes era ingerência, morosidade, corrupção ou incompetência, tornou-se opção política do governo.

O Relatório de Violência contra os Povos Indígenas no Brasil com dados de 2022, publicado pelo Cimi, mostra o rastro de omissões do governo anterior, com o sistemático descumprimento de decisões jurídicas e uma omissão intencional na proteção da TI Yanomami (ver página 24).

O passado revisita o presente; e o que aconteceu nos últimos anos foi a escalada de um projeto de genocídio em curso.

O novo governo Lula precisava enfrentar essa situação de forma efetiva. Não havia tempo a perder. A atuação do governo na TI Yanomami sinalizaria seu compromisso com o enfrentamento do garimpo e de outras formas de invasão, também em outros territórios indígenas no país. O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou em agosto de 2020, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, que fossem adotadas medidas de contenção do avanço do Covid-19 em áreas indígenas com, inclusive, desintrusão de invasores nos territórios e, em 05 de maio de 2023, reforçando a ADPF, o Ministro Luiz Roberto Barroso determinou a obrigatoriedade do Governo em estabelecer medidas de proteção territorial e a retirada de invasores de sete terras indígenas. 

No entanto, após um ano do início das ações de governo e apesar dos esforços de pessoas e profissionais engajados, a situação na TI Yanomami continua crítica. As medidas adotadas foram claramente insuficientes, não foram efetivas e não contaram com a articulação e o empenho necessários por parte de todas as instâncias do governo. 

A desintrusão do garimpo exigia uma ação articulada e contundente, com a participação de diversos órgãos de governo e de Estado. Era necessário instalar medidas permanentes de estrangulamento da atuação garimpeira, com controle do espaço aéreo e do mercado de abastecimento dos principais insumos da atividade. Mas não foi isso que aconteceu, ou pelo menos, não aconteceu com a contundência e articulação que a situação requer. 

Representantes do Governo Estadual e membros da elite política de Roraima fizeram sua incidência em alguns ministros do governo Lula, responsáveis pela operação, que chegaram a acreditar e externar publicamente que o garimpo tinha que ser parte da solução. Com isso, enviaram uma mensagem confusa e falaciosa que contribui com a manutenção do aliciamento de jovens, dificultando a procura necessária e urgente de alternativas sustentáveis e justas para toda a sociedade roraimense. 

As Forças Armadas, como já ficou evidente, não acataram as diretrizes, não colaboraram em tudo o que lhes foi solicitado, não foram competentes no que lhes cabia e inclusive negaram acesso ao território a própria Hutukara Associação Yanomami (HAY) para realizar um sobrevoo de monitoramento do garimpo. Em algum momento, o Ministério da Defesa e o Exército deverão explicar por que o garimpo avançou nos últimos anos dentro da região de Surucucus, onde existe há muito tempo o 4º Pelotão de Fronteiras do Exército. “Eu pensei que o garimpo nunca fosse chegar a minha terra, pois lá é longe e tem quartel”, afirma uma liderança indígena da região. 

Uma mudança no Decreto atribuiu, desde meados de 2023, as Forças Armadas a responsabilidade para as ações de repressão e o combate aos crimes na TIY. Após uma inicial força manifestada pela Operação Ágata Fronteira, o Exército alegou contínuas justificativas para a ausência de ações, enquanto ficava evidente a negligência da Aeronáutica no controle do espaço aéreo.

Segundo dados do governo, em junho de 2023, 80% dos invasores já tinham saído do território e a destruição ambiental foi significativamente reduzida. O que o governo não percebeu é que, sem a manutenção das medidas de contenção e sem a procura de alternativas, essa saída do território não seria definitiva. A rede de apoio e abastecimento ao garimpo instalada nas diversas vilas e municípios ao redor da terra indígena permaneceu quase intacta e a disputa de áreas de garimpo por parte de grupos milicianos e vinculados ao narcotráfico se mostra muito ativa. 

Desde junho de 2023, organizações indígenas e entidades de apoio vêm alertando que o garimpo está retornando ao território Yanomami, diante da porosidade e inconsistência das medidas de desintrusão. Ele retorna com a mesma violência e impunidade. Estas informações foram sistematizadas em documentos que continuam sendo encaminhados para os órgãos competentes que abrem espaço para a interlocução e são apresentadas em audiências públicas, como a acontecida na sede do Ministério Público Federal (MPF) em Roraima, sobre a situação no Uraricoera, no dia 01 de dezembro de 2023.  

Em relação ao atendimento à saúde, segundo as informações do próprio governo, em 2023 houve um investimento importante em recursos humanos e financeiros, com mais de 1 bilhão de reais, o que significa um aumento de 122% relativo ao governo anterior. A principal prioridade era a ação emergencial para, no primeiro momento, salvar vidas; e a principal estratégia devia ser o fortalecimento da atenção primária de saúde no território, por meio do Distrito Sanitário Especial Indígena-DSEI Yanomami/Ye’kuana, com o apoio necessário ao retorno das equipes de atendimento a área, com equipamentos e meios suficientes e adequados. Este precisa ser o principal caminho e horizonte. Mas, já foi demonstrado inúmeras vezes que, com a presença criminosa do garimpo, a saúde das comunidades e o atendimento de proximidade estarão sempre comprometidos e inviabilizados. 

Lideranças indígenas e pessoas que mantêm contato com os Yanomami, manifestaram em contínuas notificações e em audiências públicas (a exemplo da realizada no dia 01 de novembro de 2023, na sede do MPF em Roraima), grande preocupação com a carência de atendimento na área, com postos fechados ou atendimento intermitente e comunidades não visitadas. Constataram a insuficiente mobilização das equipes de saúde para o atendimento e acompanhamento nas comunidades, devido, em parte, a falta de segurança continua por causa do garimpo.

O Comitê de Operações de Emergência (COE), criado para coordenar a ação emergência em saúde, qualificou a transparência dos dados sobre saúde dentro do território, superando assim a opacidade proposital da gestão anterior, que ocultou informação para deixar passar o projeto de morte. Mas esta ação de transparência, sendo fundamental, não era suficiente se não estivesse acompanhada de medidas efetivas de retomada da atenção primária e da definitiva desintrusão do garimpo. 

Hoje sabemos, pelos Boletins do COE, que entre janeiro e novembro de 2023 foram registradas 308 mortes, sendo destas 104 crianças menores de cinco anos. Segundo o sistema de informação de vigilância epidemiológica sanitária da malária, até o final de novembro de 2023, foram registrados 26.641 casos na área, de acordo com  a reportagem da Samaúma de 19 de janeiro de 2024, foi maior do que o ano de 2022.

A escala de descontrole da malária é um aspecto da grande omissão, visto que, no auge da crise, a TI Yanomami contava com a metade de todos os casos de malária no país. Um povo adoecido, fraco, abandonado à sua própria sorte em uma das maiores invasões massivas de garimpeiros. Ainda há muito que se fazer e para isso o governo precisa de muita mais determinação, maior articulação, capacidade de diálogo e de escuta às comunidades e seus aliados. 

O grande desafio de restabelecer as estruturas dos Polos Base de Saúde nas regiões mais afetadas pelo garimpo, tornou-se uma missão imprescindível. Dentre os Polos Base que foram reabertos, dois estão funcionando debaixo de lona de forma improvisada e precária e outros três correm grave risco de fechar pelo retorno de garimpeiros. 

Em visita recente de representantes do Governo Federal a Roraima, chamaram a atenção algumas declarações no sentido de que não se tinha a verdadeira dimensão do problema e que agora era necessária uma ação mais contundente, articulada e permanente. Mas todos pensávamos que essas duas constatações já eram as premissas que, há um ano, levaram o governo a decretar o Estado de Emergência. Não há tempo a perder quando um processo de genocídio está em curso.

Em janeiro de 2024, após determinação do STF para que o Executivo apresentasse um novo Plano de Ação na TI Yanomami, o Governo Federal determinou novas medidas na procura de maior determinação e efetividade nas ações contra o garimpo e na retomada da política de saúde no território Yanomami e Ye’kuana. Havia um reconhecimento implícito de que o que foi realizado até o momento não foi suficiente. Entretanto, as novas medidas devem incorporar o aprendizado de um primeiro ano de operação cujo resultado foi aquém do esperado. A extensão do território e a complexidade das medidas já eram conhecidas desde o início e, apesar delas, caminhos de solução já foram apontados e traçados no passado.

A instalação de uma Casa de Governo em Roraima, anunciada como uma das novas iniciativas do governo, deve significar uma efetiva melhora na articulação interna entre todos os órgãos competentes e uma estrutura que garanta o cumprimento das obrigações constitucionais das diversas instâncias. 

As Forças Armadas devem assumir, sem mais resistências, sua responsabilidade no controle do espaço aéreo e contribuir, com outros órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal, no desmantelamento da logística que abastece e sustenta o garimpo dentro do território Yanomami. 

O fortalecimento e estruturação do Distrito Especial de Saúde Yanomami e Ye’kuana e o restabelecimento da atenção primária de proximidade devem ser prioridade estratégica e urgente. 

É fundamental que o governo estabeleça, não apenas interlocução, mas efetivo diálogo e colaboração com as organizações indígenas e entidades da sociedade civil que manifestaram e manifestam interesse em colaborar e que possuem a expertise necessária para enfrentar situações como a atual na TI Yanomami. 

O povo Yanomami é assolado por décadas pela exploração garimpeira que vem causando diversos impactos e mortes, chegando a ter a metade de sua população morta pelas práticas ilegais do garimpo. São vítimas de genocídio e, mais uma vez, sofrem essa situação. São incentivados a acreditarem em um destino de extermínio ou de sobrevivência apenas tornando-se “brancos” garimpeiros, acabando com a floresta e consigo mesmo.  

O governo tem todos os recursos e medidas para evitar isso, é preciso mais que força de vontade, é preciso que seja uma opção, um compromisso garantir a vida do povo Yanomami. O novo momento político no país deve responder com determinação e firmeza para que este histórico seja definitivamente superado e os povos Yanomami e Ye’kuana possam ter sua vida em paz e com saúde e seu território plenamente garantido.