Sebastião Pereira do Nascimento*
Na história sombria do Brasil, há profundas feridas que vão desde os primórdios da invasão europeia até os dias atuais. A começar, os invasores feriram de morte os povos indígenas, habitantes nativos desse imenso país. Depois, os luso-brasileiros feriram o país durante trezentos anos de escravidão. Em simultâneo, abrem intensas feridas na Mata Atlântica, com plantação de cana-de-açúcar, café, etc. indo paulatinamente ferindo os domínios do Cerrado e da Amazônia. Logo, o inferno do Brasil foi excedendo o inferno do mundo com os hediondos golpes de Estado. Uma ferida que tem como principais protagonistas as forças militares, sobretudo quando trazidas para o cenário político. Neste espaço, pelo menos quatro desses repulsivos episódios são citados: o golpe de 1889, quando militares e lideranças políticas destituíram o imperador Pedro II, proclamando a República.
O golpe de 1930, quando da derrocada da “primeira República”, motivada por levantes militares — movimento tenentista — que propunha a ascensão dos militares no poder, culminando mais tarde com a ditadura Vargas, o chamado Estado Novo. O golpe de 1964, com a deposição do presidente eleito João Goulart, que levaria vinte anos com a mais brutal ditadura. O golpe civil de 2016, quando do afastamento inexato de Dilma Rousseff da presidência da República pelo Congresso brasileiro e a elite econômica, respaldado por segmentos do Judiciário. Um movimento infame que abriu as portas para ferir ainda mais o país com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, que logo reincide a ideia de golpes de Estado, com a participação de militares e inescrupulosos agentes públicos, numa trama golpista que culminou com o fatídico 8 de janeiro de 2023.
Conforme as investigações da PF, Bolsonaro, que chegou à presidência república por circunstâncias alheias a sua capacidade, durante os quatro anos de governo, fez de tudo para cooptar as Forças Armadas no intuito de tomar o poder pela força, já que previa sua derrota para Luís Inácio Lula da Silva nas eleições de 2022. Durante todo tempo, Bolsonaro passou cada vez mais vociferar discursos do tipo: “…este candidato não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer ao golpe para impedi-lo de governar”.
Discursos assim se propagavam quando Bolsonaro e sua corja golpista conspiravam na tentativa de minar o processo eleitoral, subjugar o STF e cevar o Congresso com verbas indébitas. Onde parlamentares, como sempre, ávidos por dinheiro e cargos, levaram o toma lá, dá cá em proporções colossais. Sobretudo com o “orçamento secreto”, que permitia que parlamentares destinassem recursos diretamente dos cofres da União, sem que houvesse nomes, limites e destino do dinheiro, o que, na prática, facilitava os atos de corrupção.
Toda essa trama que fere profundamente a Constituição, urdida por Bolsonaro, tinha o propósito de mantê-lo no poder com apoio das Forças Armadas. O ex-presidente sustentava a tese de implantar um regime ditatorial ou, no mínimo, um sistema “iliberal”, que se resume numa democracia vazia, de baixa intensidade, guiada por um processo no qual, embora ocorram eleições, os cidadãos são impedidos de exercer o controle sobre aqueles que exercem o poder abusivo. Isso requer largas mudanças constitucionais, por meio de emendas ou substituição da própria Constituição, restringindo os direitos fundamentais com único intuito de sufocar a democracia.
A ideia de Bolsonaro de trazer as Forças Armadas para dentro da política, tinha o propósito de intimidar a sociedade e conspirar contra o Estado. Felizmente, quase a totalidade dos políticos e do judiciário brasileiro e uma parte dos elementos do alto comando das Forças Armadas não embarcaram na cilada golpista de Jair Bolsonaro. Todavia, outra parte das fileiras militares e contingentes das forças de segurança pública, além de milicos aposentados — principais ideólogos do bolsonarismo — se fizeram presente na tentativa de golpe.
Vendo assim, diante da emblemática história das Forças Armadas, percebe-se que os militares gostam do poder. E uma vez no poder, não querem largar o osso. Ainda que na atualidade as coisas sejam um pouco diferente. Mas, tempos atrás, o ingresso na carreira militar era mais do que uma via de ascensão à alta classe média brasileira. Um caminho mais fácil de acesso ao poder político central. Talvez isso explica o porquê da conduta autoritária dos militares e sua inclinação para o regime ditatorial. Essa ambiguidade talvez seja o principal causa que levou a adesão dos milicos à ideia estapafúrdia de Bolsonaro. Tudo isso associado àvisão ideológica das Forças Armadas, que historicamente sempre provocam quebra de hierarquia e indisciplina, levando o poder central ao constitucionalismo abusivo e ao legalismo autocrático, que nada tem de patriótico, além de deturpar o Estado de Direito. O qual se afinca num estado democrático balizado pela soberania popular.
Por outro lado, o povo brasileiro acreditava que o golpe de 1964 fosse enterrado como a última agenda golpista do Brasil. No entanto, as tratativas golpistas de Bolsonaro e sua trupe — coincidência ou não —, evidenciam que a contabilizar a partir da proclamação da República, a cada trinta ou quatro décadas, o ciclo de golpes de Estado se renova no Brasil. Ou seja, uma ferida que parece que nunca será cicatrizada. Há sempre energúmenos que promovem um novo trauma no intuito de se alimentar da sangria aberta.
No tocante aos valores patrióticos, algo tão defendido pelos sequazes bolsonaristas que se dizem patriotas, mas que, na verdade, agem como os abutres que quando estão perto dos homens, vomitam fezes sobre si mesmos. Isso significa que quando se aglutinam em conluio, ferem de morte seu próprio país. Esses farsantes, sem nenhum pudor moral, associados ao abutre-mor passam regurgitar descontroladamente suas vísceras pútridas, onde cada regurgito avultarainda mais o ódio que eles têm da pária ou de qualquer das boas qualidades morais.
Quando se fala do inelegível, deparamos com um sujeito imoral que desde sempre nunca fez nenhum gesto profícuo para a sociedade brasileira. Ao contrário, em toda sua patética vida, ele sempre buscou se locupletar das coisas públicas, como fez durante os vinte e sete anos como deputado federal e, como não poderia deixar de ser, levando seus filhos (também parlamentares do baixo clero) seguir seus passos. E ainda, como forma de obter mais benesses, Bolsonaro, durante todo o seu governo, realizou inúmeras “motociatas” por diversas cidades do país, tendo esses eventos alto custo para o Estado. Além disso, se negava utilizar capacete (infringindo a lei do trânsito), desobedecia às orientações sanitárias em plena pandemia e fazia dos eventos uma prática ilegal de campanha eleitoral antecipada. Como forma de usurpar ainda mais o país, o inelegível surrupiou diversas joias do patrimônio nacional, demonstrando não ter nenhum respeito pela coisa pública.
Sobre as joias rapinadas, a Polícia Federal listou pelo menos quatro conjuntos de itens que Bolsonaro e seus comparsas militares venderam ou tentaram comercializar no exterior. Segundo a PF, as peças foram doadas como presentes de representantes estrangeiros ao Estado brasileiro. Com base nas investigações, o ministro Alexandre de Moraes (STF), afirmou que a PF colheu robustas evidências de que o esquema de desvio de presentes recebidos pela presidência da República ocorreu por “determinação de Jair Bolsonaro”. Além disso, o ministro cita que a PF identificou que valores obtidos com a venda dos presentes “eram convertidos em dinheiro em espécie e ingressavam no patrimônio pessoal do ex-presidente”.
O mais impressionante ainda são seus adeptos, que mesmo sabendo da baixa qualidade moral do sujeito, o aplaudem e dão vazão as suas indecências. Isso mostra que também são pessoas que não possuem nenhum limite ético e moral. Portanto, diante de tantas indecências, Bolsonaro e seus seguidores costumam exaltar reiteradamente que são guardiões da família, pátria e Deus. Porém, são elementos que desonram a própria família, além de depreciar os valores humanos e a diversidade da família brasileira, inclusive das famílias homoafetivas. Também são habitualmente detratores de mulheres — perturbações e assassinatos de mulheres (inclusive mulheres trans), cresceram muito nos últimos anos, podendo isso está aliado ao aumento de armas pela população e às narrativas conservadoras adotadas pelo governo passado, quando sujeitos misóginos se sentiam (ou se sentem) “autorizados” a cometer as mais diversas formas de violência contra a mulher.
No geral, também falam em nome de Deus, mas que cometem incoerências quando trocam o bem pelo mal, sobretudo disseminando seus vícios ultrajantes contra a moral religiosa e a liberdade de religião. Também cometem temeridades quando defendem a arma, em vez de disseminar o amor. Ou quando destilam ódio contra o trabalhador humilde, o morador da favela, a liberdade de gênero, ou quando usurpam a boa-fé da pessoa fragilizada, mormente aqueles que se dizem pregadores da palavra de Deus.
Durante as eleições de 2022, Bolsonaro apregoava incessantemente que, se Deus quisesse, ele seria reeleito. Mas, para a felicidade de todos: Deus não quis. Deus não só teve compaixão do Brasil, como evitou que Bolsonaro e seus compassas continuassem praticando rudezas pelo país. Com isso, podemos até suspeitar que o “deus” de Bolsonaro não seja o mesmo Deus do povo brasileiro que deu a vitória ao Lula com mais de 60 milhões votos, a maior votação por um candidato à presidência da república desde a redemocratização do país. O “deus” de Bolsonaro parece ser mesmo outro “deus”. Um “deus” que venera as mentiras, as indecências, as artimanhas, as violências e assim por diante.
Os bolsonaristas também se dizem patriotas. Todavia, são alinhados ao que tem de mais nocivo ao país: golpe de Estado. Não satisfeito com isso, por meio de ações criminosas, esses elementos também alimentam um desejo mórbido de saquear e depredar o patrimônio natural do Brasil. Como inconfidentesda pátria, sentem o prazer em destruir o patrimônio público. Como o ataque às sedes dos três poderes em Brasília. Portanto, são esses os “patriotas” que, através do desregramento moral, mostraram ao mundo que, na verdade, não passam de detratores da nação, os quais se apossaram da bandeira nacional para atentarem contra o povo e a democracia.
No final do ano passado, ainda como presidente da república, Bolsonaro fugiu do país, deixando seus comparsas a ver navio, levando consigo 800 mil reais e, quem sabe, outras malas de ouro e joias do Brasil. Com essa atitude covarde, Bolsonaro, além de demostrar desprezo pelo país, assumiu também ser o que sempre foi: um sujeito mesquinho e canalha, sem nenhum valor patriótico. Isso também trouxe à luz a certeza de que as pessoas (vazias de discernimento) que o elegeram nas eleições de 2018, optaram pelo lado errado para construir o Brasil.
Diante dessas tempestades, o banimento de Bolsonaro da presidência do Brasil foi uma libertação para o país e um grande feito para a democracia. Hoje, o inelegível continua restrito a sua bolha, repleta de sujeitos acéfalos que possuem forte aversão pelos livros e convictos de que a Terra é plana. Do mais, são elementos que agem com as vísceras igualmente ao seu malfeitor. Portanto, são os mesmos negacionistas que naufragaram com Bolsonaro nas eleições de 2022 e os mesmos compassas que conspiraram contra a nação. Logo, muitos que embarcaram no barco furado de Bolsonaro estão submergindo para o fundo das prisões (com ele), prestando contas à justiça. E até o final da submersão total, outros sequazes pularão do barco e darão um amargo tchau a Bolsonaro e seus náufragos, mesmo sabendo que, cedo ou tarde, o peso da lei também cairá sobre si. De qualquer maneira, é preciso puni-los rigorosamente todos os que atentam contra o país, para que a ferida recidiva por essa tentativa de golpe de Estado seja para sempre cicatrizada no Brasil.
* Consultor ambiental, filósofo e escritor. Coautor do livro “Pandemia: Poemas, Contos e Microcontos” (2022). Editora da UFRR.