OPINIÃO

Um certo “sanatório” nos campos de São Marcos

Sebastião Pereira do Nascimento*

A criança, no alvorecer da pré-adolescência, era desterrada da sua terra pela raiz. Muitas vezes nascida de uma relação forçada, prática de molestamento e abuso que acontecia pelas fazendas do norte do Brasil, onde os povos nativos viviam tolhidos de sua liberdade e tinham que se sujeitar às vontades do homem branco. O qual nem sempre se comportava de maneira civilizada, sobretudo no tocante ao assédio moral e sexual contra as mulheres indígenas que eram obrigadas a ceder a seus desejos carnais. O mesmo homem branco, que na maioria das vezes era o próprio patrão, o dono da fazenda onde as mulheres trabalhavam.

Separadas dos pais, quase sempre de forma compulsória, as crianças eram levadas para um recinto de isolamento social que funcionava como uma espécie de internato, criado na região do lavrado, lá pelas décadas de 1940/50 e desativado no início dos anos 1970. O estabelecimento foi situado primeiramente próximo à Serra do Urubu, hoje área da comunidade indígena Vista Nova, TI São Marcos. Mais tarde, em decorrência de uma instabilidade sanitária, o internato foi reinstalado próximo ao igarapé Xiriri — margem esquerda do rio Uraricoera. Na época, a área pertencia ao depósito Xiriri, retiro de gado da antiga fazenda São Marcos.

Sobre esses fatos, moradores antigos da região do baixo São Marcos relatam que na época, algumas crianças oriundas de várias regiões do lavrado eram trazidas e colocadas neste lugar, chamado de internato. O “recrutamento” das crianças se dava muitas vezes de forma forçada, ainda que com o “consentimento” dos pais, que eram persuadidos entregar seus filhos(as) com pressuposto de que o melhor para eles seria “estudar”, os quais teriam melhores oportunidades de vida no futuro.

Antigos colaboradores do Serviço de Proteção ao Índio (SP) — órgão estatal em vigor de 1910 até 1967, quando foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai) —, membros da igreja e alguns personagens importantes da sociedade “civilizada” eram os principais responsáveis pelo “recrutamento” dessas crianças. Durante as conversas, alguns moradores citam que parte dessas crianças “aliciadas” eram filhos(as) ilegítimos(as) de senhores das fazendas.

Um começo intrigante. Em volta a tanto mistério, algumas informações dão conta que o internato começou com a preocupação dos fazendeiros do lavrado em não revelar o que todo mundo sabia, ou seja, “esconder” da sociedade local que ele teve filhos(as) com a empregada indígena dentro da sua própria casa (na fazenda), onde muitas vezes as mulheres (esposas dos fazendeiros) não costumavam ir. Essa preocupação foi levada a algumas instituições locais e decidiram criar uma espécie de internato para segregar, além de outras crianças indígenas, os filhos(as) ilegais dos tais fazendeiros, onde em muitas ocasiões a igreja se fazia omissa e o Estado, com a pretexto de implementar “políticas públicas”, dava sua real contribuição.

As crianças eram trazidas a força aos cuidados desses elementos “brancos” até o internato, que também ficou conhecido como “sanatório”. Por que “sanatório”? Não se sabe ao certo. Nota-se que alguns autores quando tratam sobre a educação indígena, se remetem ao termo sem dar detalhes o porquê do nome. Por outro lado, conversas circundantes apontam que o espaço foi criado pelo Estado com apoio da Igreja, no intuito de “sanar” embaraços dos fazendeiros que tinham filhos fora do casamento com mulheres indígenas. Assim, o recolhimento compulsório dessas crianças “bastardas” tinha a finalidade de esconder da sociedade envolvente o proceder lascivo dos homens brancos das fazendas. Algo demais doloroso para os povos indígenas, mas tratado apenas como infidelidade pela sociedade branca quando se tratava de homens casados.

O ritual de chegada. Toda criança recém-chegada no internato passava por uma liturgia onde era obrigada a tomar banho, lavar a cabeça, escovar os dentes e cortar o cabelo — dos meninos era comum raspar totalmente, enquanto das meninas cortavam o mais curto possível. Após esses tratos, trocavam as roupas da criança por vestimentas “padronizadas” e a orientavam sobre as regras e os afazeres do internato, incluindo o horário para “estudo”. Tudo isso era só o começo do horror. No dia a dia do internato, as crianças eram submetidas a diferentes tipos de violência: castigos, agressões, pressões psicológicas, trabalho forçado, má alimentação, intolerância, preconceitos, negação da língua, da cultura e dos hábitos tradicionais. No presente, observa-se quão intenso foi esse tormento que levou as vítimas desse sistema a um trauma recrudescente que na maioria das vezes, nem conseguem falar desse passado sombrio.

Na segunda metade dos anos de 1970, o internato que funcionava no retiro Xiriri passou funcionar na sede da então fazenda São Marcos. Um cenário menos sinistro, mas tão caótico quanto desesperançoso para as crianças indígenas. Nessa época, era comum as famílias da sociedade local “adotar” essas crianças (pré-adolescentes) com o pretexto de estudar em Boa Vista. No entanto, essas crianças eram “acolhidas” como serviçais, onde na maioria das vezes sofriam as mesmas violações do internato.

As crianças eram sujeitas às nocivas práticas dos patrões apenas por serem indígenas. Muitas delas filhas da relação extraconjugal do branco, quando eram vistas pela sociedade como filhas da “vergonha” ou pela igreja como filhas do “pecado”. Então, de vítima da crueldade do homem “civilizado”, a criança passava a ser culpada simplesmente pelo fato de ter nascida. Logo, eram abandonadas diante de um mundo desconhecido e desumano. Práticas hostis que coincidem com os relatos de Peter Riviere, quando se refere sobre a história de violência adotada pelos pecuaristas do norte de Roraima:

“[…] O sistema é aberto a grandes abusos e geralmente a criança torna-se um criado não remunerado. Eu tenho visto casos em que a descriminação contra o filho de criação é bem marcante. A criança adotiva fazendo todos os trabalhos braçais, como buscar água, cortar lenha, tomar as refeições em pé na cozinha e ser hostilizada até pelos membros mais novos da família.” (Riviere, Peter. The Forgotten Frontier. Ranchers of North. Brazil. USA: Rinehart and Winston, Inc. 1972).

Esses atos ultrajantes cometidos contra as crianças indígenas, tanto no internato quanto nas casas dos brancos em Boa Vista, nada trouxeram de benefícios para essas crianças, além do incontestável genocídio cultural. No contexto histórico, essa extinção cultural se qualifica como uma das piores violências vividas pelos povos indígenas roraimenses, que guardam na memória a triste passagem pelo “tribunal” coercitivo do homem branco, cuja toxicidade moral deixa patente que toda tribulação praticada na “casa dos horrores” não foi meramente episódica.

Na época do internato, muitos pais indígenas ouviam comentários de violência física, psicológica e sexual contra suas filhas e filhos. Mas quando tinham a oportunidade de questionar alguém dos órgãos indigenistas, estatais ou mesmo da igreja, o interlocutor simplesmente negava ou ponderava qualquer tipo de violência. Ou se por acaso algum dos genitores tivessem contato com seus filhos(as) no internato, essas crianças também “negavam as atrocidades, com receio de sofrer retaliações por parte dos responsáveis do “sanatório”.

O cemitério, hoje perdido em meio a vegetação do lavrado, é o principal testemunho mudo do que algumas crianças indígenas sofreram no submundo de um sistema preparado pelo Estado. Com isso, muitos pais e mães indígenas nunca mais voltaram a ver seus filhos e filhas, pois foram arrancados(as) para sempre do ventre familiar. As mães comumente se calavam diante da devassidão dos patrões e de outros bandalhos, pelo receio da punição do branco ou pelo medo de serem julgadas pelo próprio marido, ou pelo seu povo, pois elas se achavam culpadas e não vítimas dos homens “civilizados”. E por serem mulheres fortes, optavam sofrer em silêncio, a fazer sofrer seus parentes.

Para esconder as barbáries cometidas no internato, os brancos alegavam que os casos de óbitos de crianças internas eram decorrentes de doenças como tuberculose ou malária. Porém, havia mortes causadas por acidentes de trabalho e suicídios, relata uma das testemunhas contactadas. De qualquer modo, todos os casos de mortes dessas crianças hoje se transformaram num eterno mistério. Ou seja, dificilmente se saberá a real dimensão do sofrimento causados a esses pequenos seres humanos indefesos.

Para essas pessoas, as dores de ontem se tornaram eternas e potencializadas pela perda da identidade e da língua materna, além dos traumas e dos vícios adquiridos. Diversas narrativas sobre essas questões inferem que no decurso dos anos, várias dessas pessoas vítimas do “sanatório”, com a intenção de “curar” suas dores existenciais, acabaram buscando fuga no álcool, nas drogas, na prostituição, etc. Sob a perspectiva do medo, o que essas pessoas desejavam mesmo era reencontrar a sua alma indígena, algo que também foi roubado juntamente com a infância de cada uma.

Por conta disso, essas pessoas nunca mais conseguiram voltar ao seu povo ou ao seu lugar de origem. Hoje, na fase adulta, passaram a sofrer as mesmas violências e opressões sofridas na infância. Muitos são os retratos de uma época (sobretudo na capital Boa Vista), em que as “mulheres indígenas casavam ou se juntavam com branco e formavam famílias, onde muitas delas eram agredidas, abusadas e escravizadas pelo marido ou pelos familiares do mesmo. Poucas tiveram a “sorte” de encontrar um bom casamento,” relatos de uma senhora indígena da região de São Marcos — esses “laços afetivos” vetaram definitivamente o retorno de muitas mulheres indígenas às suas origens e à relação com seus parentes.

Mas, como tudo na vida tem exceções, com o passar do tempo, algumas dessas crianças do internato (hoje adultas), encenando deixar a vida sofrida para trás, voltaram às suas aldeias. Alguns (homens e mulheres), até se tornaram importantes lideranças indígenas. Com isso, retornaram à sua origem, à cultura de seu povo e ao seu território tradicional. Reconstruíram parte daquilo que um dia os brancos tentaram tirar-lhes. E, apesar das feridas que nunca cicatrizam, esses indígenas são partícipes incondicionais da resistência e da história dos povos indígenas do lavrado.

Outras casas de horrores. Bem antes desses infortúnios causados aos os povos indígenas de Roraima, os povos originários do Canadá também passaram pelas mesmas tribulações, com a morte de centenas de crianças indígenas. Isso veio à luz pela descoberta de covas com restos mortais de crianças nativas que passaram forçadamente por iguais cenários no interior do Canadá. Durante quase um século, o governo canadense enviou milhares de crianças indígenas a internatos (alguns controlados pela igreja católica), onde eram obrigadas a se converter à religião e abandonar suas próprias identidades: a língua materna e toda herança cultural herdada do seu povo.

Os internos também sofriam abusos sexuais e outros tipos de violência, quase sempre culminando com a morte das crianças. Mais recentemente, o governo do Canadá se comprometeu reparar todas essas violências coletivas causadas por esses estabelecimentos. Sendo o gesto parte do processo de reconhecimento das atrocidades cometidas contra as populações originárias canadenses, que levou o governo a se comprometer com a justiça e pagar cerca de C$ 320 milhões de dólares canadenses (cerca de R$ 1,2 bilhões) aos povos indígenas afetados pelo sistema de internato, além de buscar locais de sepultamento e homenagem às vítimas.

Essa descoberta canadense acabou atingindo os EUA, que também se utilizou dos mesmos expedientes para com os povos indígenas locais. Por conta disso, o governo estadunidense foi obrigado abrir uma série de investigações, tendo no final revelado que, entre 1819 e 1969, um sistema federal de internatos para crianças indígenas, ocasionou a morte de centenas delas em decorrência de vários tipos de violência. Nos internatos se praticava, além da extinção cultural das crianças, regras impostas por meio de severas punições, como: agressões, confinamento solitário, flagelação, fome, chicotadas, etc. “(…) As crianças indígenas mais velhas às vezes eram obrigadas a punir as mais novas. Se alguma dessas crianças fugisse do internato e se fosse capturada, recebia as punições, às vezes a morte.” Relatório investigativo do Departamento do Interior dos EUA.

Portanto, não diferente do Canadá e dos Estados Unidos, é o caso do internato (“sanatório”) estabelecido aqui nos campos de São Marcos. Além das semelhanças quanto às intenções e o modus operandi desses estabelecimentos, seria oportuno aos povos indígenas roraimenses avaliarem também os precedentes abertos pela indenização feita pelo governo do Canadá e, com base em boas investigações — caso se verifique razões para tanto —, buscar possíveis reparações coletivas por parte do Estado brasileiro em favor das populações indígenas afetadas por esse nocivo sistema de internato.

*Filósofo, escritor e consultor ambiental. Autor dos livros “Sonhador do Absoluto” e “Recado aos Humanos” (Editora CRV). Coautor do livro “Pandemia: Poemas, Contos e Microcontos” (Editora da UFRR).