Ir a um supermercado e ouvir um sotaque espanhol carregado virou rotina em Boa Vista. Isso tudo porque os imigrantes venezuelanos são a maioria a deixar currículos nas redes de supermercado. Por dia, o número passa de 25. Quando contratados, trabalham como repositores de produtos ou operadores de caixa, mas também existem açougueiros, atendentes, funcionários do setor administrativo e até gerentes de origem venezuelana.
Segundo a analista de recursos humanos de uma rede de supermercados da capital, Lia Raquel, dos mais de 800 funcionários efetivados, 92 são estrangeiros, com a maior parte vinda da Venezuela. “Recebemos mais currículos de venezuelanos do que de brasileiros. Recebemos uma média de 50 currículos por dia e pelo menos metade são de venezuelanos. Nós nunca discriminamos os candidatos às vagas. Assinamos a carteira de trabalho baseado na capacidade da pessoa. Existem muitos venezuelanos que são trabalhadores e fazem serviços com dedicação, tanto que o sub-gerente de toda a rede é da Venezuela”, explicou.
Lia Raquel contou que geralmente a dedicação dos imigrantes no trabalho diz respeito a prestar alguma ajuda a parentes que estão na Venezuela. Em alguns casos, os imigrantes ficam trabalhando na rede por um ano, para ter condições de trazer familiares para o Brasil.“Existem muitos imigrantes que trabalham aqui por um ano e depois, com o dinheiro que conseguem, vão para a Venezuela e trazem algum parente para cá para buscar outro emprego”, contou.
Ela também destacou que a rede de supermercados auxilia os imigrantes quanto aos processos de regularização de documentos no Brasil, para que não haja entraves judiciais. “Nós pedimos que o imigrante esteja regularizado para ser reconhecido como cidadão brasileiro, além da carteira de trabalho. Chegamos até a auxiliar alguns deles sobre como se faz para conseguir esses documentos. Às vezes fazemos encaminhamentos para o Sistema Nacional de Emprego (Sine). Ganhamos a fama de ser a rede que ajuda imigrantes”, frisou.
Em outra rede de supermercados, a gerente de recursos humanos, Bárbara Souza, contou que a contratação de venezuelanos é positiva e que os imigrantes são funcionários dedicados no que fazem.“Os venezuelanos são bem proativos. Nunca tivemos problemas com eles nos supermercados. O gerente do nosso mercado no Asa Branca é venezuelano e ele sempre auxilia bem os funcionários que possuem dificuldades com a língua, por exemplo. Só nesse mercado, recebemos pelo menos 10 currículos de venezuelanos por dia, e somando com os outros dois mercados da rede dá para imaginar que seja bem mais. E todos que contratamos estão de carteira assinada”, assegurou.
Apesar da tendência de mais contratações de imigrantes, alguns supermercados ainda adotam medidas mais cautelosas em relação à disponibilização de vagas. Esse é o caso de uma franquia de supermercados no bairro Jardim Floresta. O gerente administrativo do local, Cleber Cordeiro, contou que as exigências existem por causa do desconhecimento em relação ao passado dos refugiados na Venezuela. Na franquia, que possui cerca de 200 funcionários, 13 deles são venezuelanos.
“Recebemos alguns comandos de Manaus, matriz da franquia, para que haja uma exigência maior na contratação de venezuelanos, pois muitas vezes não sabemos do passado deles no país de origem. Além de pedirmos regularização no país, também pedimos para que eles comprovem que já tiveram as profissões ou graduações apontadas no currículo”, contou. (P.B)
Clientes divergem sobre contratação de imigrantes
Entre os clientes de supermercados que já foram atendidos por funcionários venezuelanos, as opiniões são divergentes. Com alguns apoiando e outros afirmando que os imigrantes estariam “roubando” vagas de brasileiros.
Essa opinião foi relatada pela Miriele Pontes, que trabalhava em uma empresa terceirizada, mas está desempregada.“O povo tá contratando venezuelanos por pena, dando oportunidade por causa da situação deles como refugiados, e deixando os brasileiros sem emprego. Eu mesma estou desempregada e há meses tentando conseguir emprego”, relatou.
Outro cliente, Alan Ridley, contou que também está desempregado desde que foi dispensado de sua vaga de estagiário. “Vai fazer um ano que estou desempregado, já levei currículo para um monte de lugares e vi muitos concorrentes venezuelanos. Não tenho nada contra eles serem contratados, mas eu vejo que não tá tendo mais espaço para brasileiros”, lamentou.
A servidora pública Elizete Rangel afirmou que já era esperado que as vagas de emprego fossem dadas aos imigrantes. “Essa é uma consequência que já era esperada de uma crise migratória. É algo que estamos tentando lidar, pois alguma hora chegaria o momento em que eles começariam a ingressar no mercado. Como muitos possuem graduação completa, fica difícil para muita gente competir”, disse.
Já o representante de vendas Edilson Sales contou que é melhor ver um imigrante empregado do que marginalizado. “Para mim, venezuelano de bem tem que trabalhar mesmo, pois eles fazem por onde. O que eu não apoio é imigrante marginal, que fica fazendo bagunça na cidade e contribuindo para o crime, esse sim merece ser jogados de volta de onde veio. Já ouvi muita gente dizer que eles só são contratados por cobrarem menos. Mas isso é ilegal, e o Ministério do Trabalho pode aplicar penalidades severas por isso”, afirmou.
Contratação deve ser igual a de brasileiros, diz advogada
De acordo com a advogada trabalhista Rosinara Alves, a contratação de imigrantes precisa ser feita da mesma forma do brasileiro, como determina a legislação brasileira. Entretanto, é preciso que haja a averiguação da documentação necessária que torne o imigrante cidadão do país, como o Cadastro de Pessoa Física (CPF) e o Registro Geral (RG).
Os direitos e deveres trabalhistas dados aos brasileiros precisam ser os mesmos com os imigrantes, que estejam com documentos regularizados. Se o venezuelano não estiver com a documentação correta, não contrate. Auxilie ele em relação à regularização de documentos e diga que a contratação só pode ser feita após isso”, orientou.
A multa para grandes empresas pode chegar a R$ 3 mil por funcionário lesado. Em pequenas e médias empresas, o valor é de R$ 800,00 por funcionário. Além disso, na ausência de benefícios, como o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), o contratante pode ser condenado a pagar pelos meses que não foram pagos.
“Venho recebendo diversas denúncias de venezuelanos que estão recebendo menos que brasileiros ou que fazem hora extra sem receber. A recomendação é que não haja a discriminação. Até uns dois anos atrás, eram comuns essas denúncias serem do interior. Entretanto, de lá para cá, vemos que tem mais denúncias vindas daqui da cidade mesmo”, concluiu. (P.B)