OPINIÃO

O cérebro dividido e a unidade da consciência

João Paulo M. Araujo

Professor de filosofia no IFRR

Membro da Escola Amazônica de Filosofia

Apesar dos inúmeros centros e áreas que o nosso cérebro possui, grosso modo, podemos falar de dois lados ou hemisférios distintos. Via de regra é associado ao lado esquerdo do cérebro habilidades como linguagem, matemática e lógica; e ao hemisfério direito, a imaginação, criatividade e habilidades artísticas. Apesar disso, não devemos endossar a ideia amplamente generalizada que pessoas com a predominância de habilidades correspondente a um dos hemisférios teriam um lado do cérebro mais desenvolvido que o outro. Na verdade, isto é um mito muito parecido com outros imaginários amplamente perpetuados de que pessoas são mais racionais ou emocionais, ou até mesmo que usamos apenas dez por cento de nosso cérebro. Neste exato momento o cérebro de cada pessoa trabalha em toda sua totalidade demandando mais energia para tarefas que estão em evidência de acordo com a deliberação particular de cada indivíduo. Do ponto de vista do funcionamento do cérebro humano, esses mitos não fazem sentido algum. Parafraseando uma expressão do neurocientista Miguel Nicolelis (2011), nosso cérebro é uma grande comunidade onde cada neurônio tem o seu poder de voto. Mas o que conecta os dois hemisférios? A resposta está no corpo caloso, uma espécie de membrana composta por um pouco mais de 200 milhões de fibras nervosas. O corpo caloso é, portanto, responsável por realizar a comunicação generalizada entre os dois hemisférios criando assim, uma unidade informacional de dados massivamente computados em nosso cérebro.

Por outro lado, para além de nossa estrutura nervosa temos a questão da consciência. Como surge a consciência, o que a caracteriza? Desde Descartes é argumentado que além dos aspectos subjetivos e qualitativos, nossa consciência expressa uma unidade indivisível. Em outras palavras, não podemos dividir um pensamento ou ideia da mesma forma que dividimos um bolo ou um pedaço de carne. A matéria pode ser infinitamente divisível, mas o mesmo não se aplica ao pensamento. E aqui chegamos no problema mente-cérebro, ou seja, como uma coisa se relaciona com a outra? São coisas distintas ou faces de uma mesma moeda? Ora, acredito que a maioria das pessoas estão de acordo com a intrínseca dependência da vida mental ao cérebro. Se algo de grave acontece com o cérebro, podemos ter reflexos severos no funcionamento da cognição e consequentemente, da mente. Todavia, isso não nos autoriza a advogar alguma forma de fisicalismo redutivo, mas apenas reforçar a ideia de que estados mentais dependem em alguma medida do cérebro. Assim, seria razoável afirmar que a consciência emerge do cérebro e é realizada nele, mesmo que não seja qualitativamente redutível à sua estrutura.

Vimos que o cérebro possui dois hemisférios que são unidos pelo corpo caloso, mas o que aconteceria se cortássemos o corpo caloso e deixássemos cada hemisfério isolado? Se a consciência emerge do cérebro, quais seriam os efeitos? Se faço uso de alguma droga lícita ou ilícita posso sentir seus efeitos em minha subjetividade, mas isso, além de passageiro não dissolve a unidade da minha consciência. Entretanto, desde os anos 50 do século passado, com os experimentos de divisão de corpo caloso em animais, os cientistas perceberam que os dois hemisférios funcionavam de maneira independente um do outro. Primeiro usaram gatos e depois macacos; os resultados foram semelhantes. Nesse contexto, a tarefa que um animal poderia desempenhar usando um olho não era mais possível quando este olho era literalmente tapado e entrava em ação o olho correspondente ao outro hemisfério. Apenas na metade dos anos 60, a divisão do corpo caloso foi testada em humanos, sob a prerrogativa de que isso eliminaria os efeitos severos da epilepsia por todo o cérebro em pacientes que corriam risco de vida, devido à intensidade das convulsões. Com o sucesso das cirurgias, as atividades convulsivas deixaram de existir. Um dos estudos que celebra esta técnica cirúrgica bem como suas implicações pode ser lido em Gazzaniga (1967), The Split Brain in Man.

Apesar do sucesso da cirurgia e do comportamento aparentemente normal da vida cotidiana dos pacientes, estudos psicológicos subsequentes mostraram que eles desenvolveram uma espécie de consciência dividida. Na descrição de Gazzaniga (1967) a separação dos dois hemisférios afetou significativamente as capacidades mentais de seus cérebros. Dentre o conjunto de testes psicológicos que foram realizados, podemos citar alguns deles. Em um dos testes foi exibida uma informação escrita durante uma fração de segundo no campo visual de um dos hemisférios. Da mesma forma que nos testes com animais, a informação permanecia desconhecida ao outro lado. Num outro tipo de teste foi usado uma série de objetos como colher, cinzeiro dentre outras coisas do cotidiano. Pela via táctil, os pacientes conseguiam reconhecer corretamente que objetos estavam segurando com a mão esquerda, mas ao olharem uma imagem ou nome do mesmo objeto não conseguiam nomear o que visualmente percebiam. A conclusão de Gazzaniga (1967, p. 26) foi que “o hemisfério esquerdo estava completamente divorciado, em percepção e conhecimento, do direito”.

A questão que surge é: em que medida a unidade consciência estava realmente dividia? É possível, neste caso, fazer uma distinção entre processos cognitivos e estados conscientes? A pergunta é lícita uma vez que alguns desses processos de reconhecimento dizem respeito à memória do paciente ou a operações cognitivas que atuam abaixo do radar da consciência. Dessa forma, do fato de que não dispomos de algumas informações, isso não elimina o outro fato de que ainda somos conscientes. Aliás, uma das prerrogativas do experimento é que os pacientes seguiram com suas vidas normalmente, o que significa, a princípio, que a noção de Self não foi prejudicada. Esse é um dos argumentos usados por Thomas Nagel (1971, p. 406) na qual “quando não estão na situação experimental, a sua surpreendente dissociação comportamental desaparece e eles funcionam normalmente”. Tim Baynes (2008) seguindo uma tradição mais clássica em filosofia, afirmou que podemos sim atribuir uma noção de unidade da consciência em pacientes com cérebro dividido, pois, o fluxo de consciência do paciente com o cérebro dividido estaria sendo realizado em série pelos dois lados numa mudança que acontece muito rapidamente o que explicaria a aparência de que os pacientes teriam duas mentes.

Em suma, a literatura científica e filosófica sobre esse tema é bem ampla e as opiniões se dividem. De um lado teríamos os partidários de um modelo explicativo reducionista da consciência às atividades cerebrais. Do outro, aqueles que defendem o caráter fenomenal e irredutível da consciência. Todavia, uma coisa vale a pena ressaltar, às vezes é preciso uma tarefa de esclarecimento conceitual dessas questões, porque o modo como podemos entender palavras como ‘mente’, ‘consciência’ e ‘cognição’ pode nos fazer adotar posturas epistêmicas que nem sempre estão claras o suficiente para nós. Na verdade, essa regra pode e deve ser adotada em qualquer questão filosófica digna de interesse. Mas e você, caro leitor, o que pensa sobre o cérebro dividido e a unidade da consciência? Ela permanece ou é, assim como o cérebro, dividida?