OPINIÃO

Desastres ambientais: herança do paradigma civilizatório

Sebastião Pereira do Nascimento*

Mais recentemente, uma pesquisa popular realizada em mais de cinquenta países sobre mudanças climáticas mostrou que quase 70% da população global, em diversas faixas etárias, acreditam que a crise atual é uma tragédia inequívoca. Contrariando a maioria da população mundial, há um contingente de pessoas, os chamados bobos do universo, que defendem não haver o aquecimento da Terra ou não acreditam que o homem tenha algum tipo de interferência no aumento da temperatura terrestre e suas mudanças climáticas.

Ao falar dessas mudanças climáticas, e antes de imputar ao homem alguma responsabilidade sobre esses eventos, é preciso considerar as diferentes fases geológicas da Terra, por exemplo, os chamados fenômenos glacial e interglacial. O primeiro é o período glacial ou glaciação, uma fase de resfriamento da Terra em que densas camadas de gelo recobrem grandes porções de terras e congelam os oceanos em determinadas regiões do planeta, agindo mais intensamente nas faixas de latitude próxima aos dois polos terrestres. O segundo é a fase interglacial, que se acontece por um determinado intervalo de tempo geológico, caracterizado por temperaturas médias mais quentes que separam um período glacial do outro.

No contexto das mudanças climáticas, não há uma razão definitiva estabelecida pela ciência, mas é plausível que elas ocorram em fusão de um conjunto de fatores e não por um único fenômeno. A teoriamais discutida na atualidade sobre essa questão condiz com os estudos do geofísico Milutin Milankovitch, que em 1920 elaborou um dos trabalhos mais significativos relacionados aos movimentos da Terra e suas relações com o clima. O estudo aponta que as mudanças climáticas são motivadas pelas variações nas taxas de radiação solar, uma vez que é essa a principal fonte de calor da Terra, responsável por mais de 90% da energia processada pelo planeta. Portanto, quanto maior a quantidade de luz solar que atinge a Terra, mais acelerada e catastróficas são as interferências climáticas.

Diante de todo esses eventos naturais, chamados de ciclos de Milankovitch, é assegurado ao homem moderno uma parcela de responsabilidade sobre esses eventos, sobretudo no âmbito do aquecimento global a partir de ações humanas para fins econômicos. Dados científicos mostram que o aquecendo gradativo do planeta tem uma relação estreita com a queima de combustíveis fósseis e o desmatamento. No caso do Brasil, por exemplo, 50% das emissões vem do desmatamento da floresta amazônica e 25% da agricultura, principalmente defendida pelo agronegócio. Já em outros países, como a China, por exemplo, mais de 80% das emissões de gases são provenientes da queima de combustíveis fósseis. Fazendo um paralelo com o período industrial, a Nasa (Agência Espacial Americana) estima que a Terra estava 1,36 ºC mais quente no ano de 2023 do que a média do período pré-industrial.

Pascal Peduzzi (diretor da GRID-Genebra), em assembleia apresentada pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), diz que “a velocidade com que as temperaturas do planeta estão aumentando é alarmante.” Outro documento divulgado pela assembleia da UNO revela que, “no início desta última década, a concentração de dióxido de carbono na atmosfera aumentou 2,57 partes por milhão (ppm), atingindo 4,14 ppm em dezembro de 2023, a maior concentração já registrada. O dióxido de carbono é o principal gás de efeito estufa, embora o metano e o óxido nitroso, gases de efeito estufa muito mais potentes, também estejam causando o aquecimento global.”

Na mesma direção, quando se refere em emissões de gases, Carlos Nobre (pesquisador do Inpa), ressalta não haver dúvida que os países mais ricos respondem por 80% das emissões históricas e 10% da população mais rica é responsável por mais de 60% das emissões em todo mundo. Para se ter uma ideia, o continente africano, com mais de um bilhão de habitantes, emitiram menos de 4% das emissões de gases globais. No entanto, esses um bilhão de habitantes da África são os que mais vêm sofrendo com os efeitos dos extremos climáticos.   

Buscando compreender o processo histórico dessas mudanças climáticas, podemos perceber que desde os tempos das grandes navegações e dos descobrimentos marítimos, que remontam os séculos XV e XVI, e posteriormente a segunda metade do século XVIII, com a revolução industrial na Europa, o homem ocidental, que nem sempre se comportou de maneira civilizada, trata de depauperar o meio ambiente em vários lugares do planeta. Ao “conquistar” esses lugares, esse homem pretensamente “civilizado”, além de não respeitar os povos nativos, também não refletia a respeito da integridade da natureza. Para ele, as florestas, os animais, a terra e seus minerais teriam sido criados para o bem da humanidade, que deveria explorá-los da forma mais inescrupulosa possível: devastando a floresta, exterminando os animais, exaurindo a terra e, acima de tudo, defraudando, escravizando ou exterminando os povos nativos, os quais sempre adotaram resistência contra esses invasores, como forma de dizer não aos estranhos que se ocupavam de afanar suas riquezas naturais e destruir sua cultura.

Fazendo um paralelo com o filósofo John Passmore, essa visão utilitarista das coisas, no âmbito ecológico, levou esses exploradores ocidentais a ver a natureza não como algo de valor próprio (intrínseco), mas sim como algo de valor meramente instrumental, a ser usado a partir de um esforço máximo para promover a transformação do ambiente em paisagens caóticas. Isso tudo em detrimento da visão dos povos nativos, que pensavam (e ainda pensam) a natureza como algo místico, muitas vezes havendo o risco de profanação em derrubar uma determinada árvore ou matar um determinado animal, por exemplo.

Para o jornalista ambiental André Trigueiro, “a humanidade, ocupando 80% do planeta, vive um período de consumo predatório dos recursos naturais, numa proporção tamanha, explorando os ecossistemas, a ponto da Terra já ter ultrapassado em cerca de 20% sua capacidade de suporte e regeneração, fazendo do ser humano um refém do seu próprio paradigma civilizatório (depredador e consumista), adotado pela maioria dos países desenvolvidos.” Nessa escala, a realidade é vista economicamente distorcida e traz consequências graves, pois a acumulação de bens e capital é colocada como prioridade, relegando sobremaneira o contexto social e ambiental.

Voltando às tragédias ambientais causadas pelas mudanças climáticas, a exemplo do que estamos assistindo na região sul do Brasil, isso tudo parece ter uma influência herdada do paradigma civilizatório (um princípio norteador de atitudes com o fim em si próprio) defendido pelos antigos colonizadores ocidentais que para aqui vieram e trouxeram também os estigmas do mito do progresso. Na atualidade, a sociedade brasileira, gerada sob a égide desse paradigma civilizatório, cuidou, ela própria, de difundir e praticar gradativamente (ao longo dos séculos), a mesma doutrina filosófica dos exploradores ocidentais de que a natureza está tão somente subjugada e a serviço do homem.

Olhando para esses fatídicos eventos climáticos, cabe dizer que todos os desastres ou mudanças negativas no meio ambiente — causadas por ações antrópicas —apenas reafirmam a ignorância e o egoísmo do ser humano. Portanto, é preciso que haja de nossa parte colocar a mão na consciência no sentido de refletirmos sobre as nossas próprias atitudes relativas à natureza. Além disso, é hora de sairmos da posição de vítimas e assumirmos as consequências dos nossos atos. É preciso também amadurecermos com os nossos erros. Pois só culpar os outros ou as circunstâncias da vida pelas respostas violentas que a natureza nos dar não vai nos trazer nenhum benefício.

Às vezes, por ignorância e ingenuidade, muitas pessoas acham que o dinheiro é mais importante do que qualquer outra coisa. Muitos pensam também que o dinheiro pode até reverter os incômodos ambientais. No entanto, só os bobos é que pensam assim. Diferente dos povos nativos (indígenas, ribeirinhos, quilombolas, geraizeiros e outros povos e comunidades tradicionais) que guardam preferência às coisas provindas do meio natural. Ao contrário do homem “civilizado”, que guarda na alma o prazer de intervir nos arranjos da natureza, transformando-a à sua maneira e, consequentemente, construindo sua própria cova.

À luz da sabedoria, os povos tradicionais têm como orientação as forças da natureza e não as forças monetárias. Eles trabalham para se manter dignamente, sem a usura do acúmulo e do ostracismo. Quando há fartura, eles compartilham; em épocas de escassez, eles ajudam o outro. A riqueza dos povos tradicionais está presente na floresta, nos rios, na diversidade de animais, etc. E por conta disso é que eles mantêm a natureza viva e sabem se corresponder com ela, direcionando sua produção de forma ecologicamente prudente, exigindo esforços no sentido de pensar nos limites da exploração, sem que tenha de desperdiçar ou exaurir os recursos naturais. Portanto, é nesse caminho que deve seguir a sociedade capitalista, no intuito de se educar (em vários aspectos) e repensar seus problemas e suas necessidades, além de promover de modo sustentável a sua produção, que seria, na essência do seu conceito, produzir em concordância com o meio ambiente e a justiça social.

*Consultor ambiental, filósofo e escritor. Autor dos livros “Sonhador do Absoluto” e “Recado aos Humanos” (Editora CRV). Coautor dos livros “Pandemia: Poemas, Contos e Microcontos” (Editora da UFRR) e “Vertebrados Terrestres de Roraima” (BGE).