O grande primeiro dia

                   Estava super, mega nervosa, a euforia estava me matando e ao acordar, na verdade, eu quase não dormi de tanto pensar, me sentei na cama e peguei o celular, eram cinco da manhã e eu só iria ao colégio, ao meio-dia. Era dia 17 de fevereiro de 2022, meu primeiro dia de aula no Brasil, Boa Vista-Roraima. O porquê eu estava nervosa, porque eu sou venezuelana, e não sabia manter um diálogo, ou seja, não sabia quase nada da língua portuguesa.

                    Naquele dia, decidi me levantar logo, fui à cozinha para tomar o café da manhã, tomei um choque cultural, porque eu não tomo café, mas é cultura do Brasil e tenho que me acostumar, o Duolingo, não me ajudou, o máximo que sabia era:  bom dia, boa tarde, boa noite, os números, o alfabeto e algumas palavras que aprendi em vídeos no YouTube. Aqui, em Boa Vista, todas as coisas são chamadas de diferentes formas, tanto na pronúncia quanto na escrita, são situações assim, que me apontam que eu estou na minha casa, na minha cidade natal, na Venezuela, e sim, num lugar diferente com uma cultura e idioma diferentes.

O relógio marcava, 11h da manhã, comecei a me arrumar, não me agradou muito o uniforme, mas tenho que utilizá-lo, e não vou mentir, ele não é bonito, mas é confortável. Almocei e meu pai chegou para me levar à escola, estava muito ansiosa. Como eu iria interagir, se não tivesse alguém que falasse espanhol? E se ninguém quisesse falar comigo?

             Cheguei ao colégio e todos olhavam para mim. Que vergonha! Eu estava cursando o nono ano, sentia uma vergonha imensa, já que todos se conheciam. Umas meninas foram me cumprimentar, mas não entendia o que estavam falando, o sino tocou, e elas foram embora, em seguida uma aluna que se chamava Érica, me disse:

– Olá, você é novata, né?

– Sim.

– Vamos deixar a bolsa na sala e depois nos dirigiremos à quadra, temos que entrar em forma.

                 Minha mente parou naquela hora, reiniciou-se como o Windows, ela falava super rápido, achei que não respirava, não processei nada do que ela falava. Ela pegou a minha mão e me conduzia pelo corredor, e eu sem entender, parei de caminhar e perguntei:

– ¿Por que me falas eso ? No compreendo.

– Ah! Você é veneca?

– ¿Veneca? O que é eso?

– Significa venezuelana. Ou você é de outro país?

– Sou venezuelana.

– Ótimo! Bora ou vamos chegar atrasadas!

                 Deixamos as mochilas e entramos numa quadra, vi dois militares, então, pensei que tinha acontecido alguma coisa, mas ela falou que os militares também trabalhavam na escola, e que ali era um colégio militarizado, eles nos ensinavam disciplina e teríamos comandos como: cobrir, firme, direita e esquerda volver. Se estava perdida, naquele momento fiquei mais ainda. Ao terminar a formação, cheguei em sala de aula e todos olhavam para mim, a aluna tenente Laís, me apresentou à turma, alguns não estavam com boas energias, outros abriram um grande sorriso. Eu sou preta e minhas bochechas queimavam tanto, que provavelmente poderiam estar vermelhas. A tenente começa me apresentar e disse:

– Pessoal, ela é a Damiliss e a partir de agora vai ser nossa colega de turma.  Dameliss pode escolher uma cadeira, por favor.

Ela terminou de falar e eu entendia basicamente o meu nome que foi pronunciado errado. Acatei a ordem procurando uma cadeira para me sentar. Alguns colegas venezuelanos foram falar comigo, exatos cinco. As meninas ficaram muito felizes, porque agora seríamos três meninas e não só duas venezuelanas. A Ary ficou empolgada e se ofereceu para me ajudar com o idioma, já a Flor é tímida, se comportou muito bem comigo e rapidamente voltou para sua cadeira.

O primeiro e o segundo tempo de aula transcorreram “tranquilas”,  aprendendo palavras novas e que mais gostei foi  “saudades”, tocou meu coração saber que foi inventada por brasileiro e pode ser utilizada quando temos uma lembrança grata de alguém, de um momento passado, ou de alguma coisa que alguém se ver privado, essa palavra é um sentimento e não tem uma tradução específica para outros idiomas, para mim é um sentimento que não tem maneira de expressar, amei e preferiria mil vezes dizer saudades que nostalgia;  soube dessa palavra por um menino que me perguntou:

– Você sente saudade da Venezuela?

                A Any traduziu a conversa, e eu não perdi a oportunidade de saber o significado da palavra saudade. No mesmo dia, o Leo o (menino da palavra saudades), me perguntou se eu queria namorar com ele. Como não entendia o que ele estava dizendo, a Any traduziu de novo e eu falei:

– ¿É um rotundo não? Não te conheço. E ele me respondeu:

– Mas eu já te vi duas vezes. Então, eu sim, te conheço.

– Não quero namorar com você.

-Tá bom! Me avisa se trocar de ideia gata.

                A Any e eu começamos rir muito, ao ponto que minha barriga começou a doer. O Leo tem o ego pelo céu. Perguntei a Any: O que é isso, de gata? Eu não sou um animal. Ela sorriu e me me explicou que era um elogio.

             O Leo se ofereceu nos ajudar nas atividades. Eu fiquei de boa e no final da aula fiz amigos novos, na verdade companheiros, porque “rostos vemos, corações não sabemos”, isso dizia a minha vovó. Naquele dia conheci cinco venezuelanos e aprendi palavras como: saudade, bolsa, quadra, sino, vovó e vovô, os tipos de sujeito, a pronúncia de alguns nomes, aprendi sobre a cultura e conheci o estilo que caracterizava o brasileiro, eles são: alegres, sociáveis , calorosos e com uma diversidade cultural grande, na minha sala tinha venezuelanos, brasileiros e um guianense, as pessoas eram brancas, pardas, altas, baixas, olhos azuis, verdes e também olhos puxados dos indígenas, mas todos são únicos do seu jeito.

                Sigo morando em Boa Vista, amo viver aqui, aprendi o português, me atrevendo a falar português com brasileiros, seja na escola, nos comércios, nas ruas e por onde eu passava. E como em todo lugar do mundo têm pessoas boas e ruins. Atualmente, estou no segundo ano do ensino médio e faço parte de um grupo de amigos conformados por serem estrangeiros, chamados de “veneca” ou “mira”, dependendo de quem nos chama assim e a forma como chama, pode ser visto como preconceito ou um adjetivo carinhoso.

Hoje, somos a diversidade cultural na sala, eu sou a preta cacheada; a Adrielly é a nordestina; a Gigi que é a Geovana é a coreana de olhos puxados; a Manuelle é cearense. Somos amigas de escola, somos o exemplo que não importa de onde você seja, sempre existirão pessoas que te vão acolher. E tudo começou com o grande primeiro dia sem saber nada e agora sei um monte de coisas, posso dizer que amo o Brasil, agradeço as oportunidades que esse país, a cidade de Boa Vista, me deu. Agora sim, consigo dialogar; agora sim, sou tradutora quando alguém não consegue se comunicar! Obrigada, Brasil! Obrigada, Boa Vista, o lugar onde vivo! Obrigada, CEMXXI! Obrigada, professora Marcélia! Obrigada, língua portuguesa!

Aluna: Damelliss Valéria B. Oliva, da 2ª série do Ensino Médio do Colégio Militarizado Professor Camilo Dias.

(Educação Linguística guiada pela Sequência didática do Caderno do Docente “A ocasião faz o escritor”, do gênero crônica da OLP, com a temática “O lugar onde vivo”.)