A manhã dessa sexta-feira, 28, foi de revolta. Mais de 200 dos 1.500 agricultores familiares que estão morando em terreno na região de Bom Intento, zona rural de Boa Vista, realizaram uma manifestação em frente à Empresa de Desenvolvimento Urbano e Habitacional (Emhur), após reintegração de posse na quinta-feira.
Presidente da Associação de Agricultores, Deusa Farias, explicou que se reuniu com a diretoria da Emhur e reivindicou que não haja mais represálias no local e a devolução de todos os bens confiscados. No fim das contas, nenhum acordo foi feito, e a associação entrará com um requerimento de análise da terra em questão na Emhur e no Ministério Público do Estado de Roraima (MPRR).
Segundo o advogado da associação, Alex Coelho, a Emhur alega que a propriedade é uma expansão urbana e estava sendo fiscalizada. Apesar disso, a defesa alega que se trata de uma localidade rural, tornando inconstitucional o ato de pedir pela expulsão por parte do órgão. A diretoria da Emhur não quis se pronunciar após a reunião.
“A Emhur diz que essa é uma área de expansão urbana. O órgão alega que não pode haver o parcelamento de solo em área urbana, ou seja, a divisão entre moradias de várias pessoas. Apesar disso, todos nós sabemos que ela é rural. O órgão pegou tudo o que eles tinham, entre enxadas, camas, redes, fogão, tudo, e sequer apresentaram documentos, apesar de admitirem que houve sim essas apreensões. Nessa reunião, a Emhur não conseguiu esclarecer se a área é urbana ou rural, então iremos solicitar um levantamento de mapas para que uma conclusão seja feita. Até lá, os agricultores ficam. Mesmo que o próprio Iteraima já tenha confirmado que o terreno é deles”, explicou.
O advogado também contou que, caso a propriedade seja comprovada como urbana, ela ainda sim seria de direito do Governo do Estado, que recebeu seu repasse por parte da União em 2009, e estaria direcionando a propriedade para a prática da agricultura familiar.
“Caso fique confirmado que a área é urbana, ela ainda é de propriedade do Estado. Entretanto, iremos ocupar o local de forma que seja uma instalação da associação de agricultores. Depois, daremos entrada em um processo de requerimento para parcelamento. Estamos entrando em contato com o Ministério Público para que essa situação seja investigada”, anunciou.
Presidente de associação relata ameaças
Deusa Farias contou que, na quinta-feira, foi conduzida à delegacia do Cantá, no Santa Cecília, e sofreu diversas ameaças por parte dos guardas municipais.
“Na quarta-feira, 26, eles estiveram no local e nos perguntaram pela documentação da área. Nós mostramos, e a Guarda Municipal foi embora. No dia seguinte, eles voltaram com reforços pela manhã, não quiseram ver a documentação, e me botaram dentro da viatura, onde fiquei por duas horas até me levarem de fato. No trajeto até a delegacia, que não foi em Boa Vista, mas sim no Santa Cecília, que fica no Cantá, recebi diversas ameaças. Dizendo que amanheceremos mortos se não sairmos dali e que figuras políticas poderiam nos matar e fazer tudo parecer um acidente. Eu achei que fossem me matar, pois dava para ver que eles estavam com armas de fogo nas mãos. No fim das contas, fui liberada por falta de acusações, mas a indignação resultou nessa movimentação nossa hoje”, contou.
A agricultora Maria Lúcia conta que desde 2013, quando o Governo iniciou o projeto de desenvolvimento da agricultura familiar na região, as represálias por parte da Guarda Municipal são constantes.
“Desde 2013, quem vive lá já passou por todo tipo de conflito com a Guarda Municipal. Ao todo, já foram dez vezes que eles destruíram coisas nossas e tentaram nos mandar ir embora à força. Em uma das vezes, em 2016, chegamos a passar fome, pois nos cercaram por dias, para que não tivéssemos acesso à água ou comida. Graças a Deus eles foram finalmente embora, nos viramos para comer e ninguém morreu. Minhas filhas ligam para mim perguntando por que eu ainda tento morar lá, em uma terra tão perigosa. Eu digo que tenho o sonho de plantar, cultivar, criar para colher, me sustentar, e vender. Estou há três anos tentando começar no Bom Intento, mas nunca conseguimos pois a Guarda sempre impede. Mas eu sempre quis isso e continuo lutando”, afirmou.
PREFEITURA – A Folha entrou em contato com a Prefeitura de Boa Vista, mas não recebeu resposta até o fechamento da reportagem.
Deputado diz que é dono de terreno
O deputado estadual Naldo da Loteria procurou a reportagem da Folha para afirmar que é proprietário da terra, contrariando a afirmação do Instituto de Terras e Colonização de Roraima (Iteraima). O parlamentar explicou que o terreno é seu há mais de 20 anos, negou a ocupação desde 2013 e afirmou que a distribuição das terras é uma manobra política.
“Eles estão ali desde 2013? É mentira! Como eles estão por lá há tanto tempo se não produziram nada por lá? Eles dizem ser agricultores, mas não plantam nada. São invasores mesmo, mas nunca irão admitir isso pois são respaldados pelo Governo. O próprio Ministério Público acredita que eles não são invasores, mostrando que não dá para levar a sério essa instituição”, relatou.
Em relação às represálias que os agricultores sofrem por parte da Guarda Municipal, Naldo destacou que o uso de violência não é de sua responsabilidade e que os agentes estavam somente realizando o trabalho necessário para retirar invasores.
“Eu não tenho responsabilidade sobre as atitudes da Guarda Municipal ou da Emhur. Se eles usaram de violência ou não, isso já não cabe mais a minha pessoa argumentar. Acredito no trabalho deles e sei que eles usam os meios necessários para a retirada de invasores”, comentou.
Sobre uma cerca que dividiria a propriedade do Naldo daquela que é do Governo, o deputado explicou que a cerca existe para que haja melhor cuidado de sua produção de gado, que ele costumava criar na região até poucos anos atrás.
“Havia uma época, em que se criava muito gado por lá. Por isso, coloquei uma cerca menor dentro da propriedade para deixar os animais separados. Mas isso não significa que minha propriedade termina naquela cerca. Muito pelo contrário, ela vai até a estrada. E sempre foi”, pontuou.
Sobre o diagnóstico feito pelo Iteraima de que a propriedade seria do Governo do Estado, o deputado estadual alegou que sequer houve uma análise de documentos e que ele não foi comunicado do retorno dos agricultores.
“O Iteraima tinha dado respaldo para mim em 2017, pedindo a saída dos ocupadores e tudo mais. Daí, eles aparecem novamente, do nada, na minha propriedade sem qualquer comunicado ou direito de defesa. Para mim, os documentos que foram aceitos pela mesma instituição no ano passado ainda estão com sua total validade”, concluiu.
ITERAIMA – O Iteraima declarou que os documentos de que a propriedade pertencia ao deputado estadual Naldo da Loteria foram cancelados após um diagnóstico de que se tratava de falsificações.
“Todo e qualquer documento precário de posse concedido para esta área foi cancelado após terem sido identificadas irregularidades na cadeia possessória apresentada neste Instituto”, afirmou em nota.
O Instituto também alega que a área em questão é de propriedade do Estado de Roraima desde 2009, com o repasse da gleba Murupu da União para o Estado.
“A área foi declarada como de Interesse Social para fins de Desenvolvimento de Projeto de Colonização pelo Estado de Roraima, conforme o Decreto nº 25.957-E, publicado no DOE nº 3323 de 21 de setembro de 2018”, complementou. (P.B)